Movimento
de espelhos
1
O dia
compõe em mosaicos
meus instantes
Amanheço
fragmentos
e durmo
ilusão de conjunto
na mais total
incompletude
Como quem se mira
em espelhos quebrados
restauro
utópicos fractais
de mim
ainda encontro a forma
de esculpir-me
um corpo indivisível
2
Na minha mesa posta
um bule com o choro de
[ontem
servido amargo
Entre os jornais do dia
o roteiro em detalhes
do que podia ter sido
Em vez da geléia de morango
o suor das tarefas
num pote de cerâmica
A faca corta o pão
como se amputasse
a língua do ódio
No balcão da copa
o relógio do microondas
cobra meu tempo
Todo dia às 7
desjejuo em silêncio
e a família ignora
a fome de dentro
3
Desço escadas
tateando teias
que eu ontem teci
junto às aranhas
Procuro os porões
em que apodrecem
palavras puídas
Entre trastes de avós
coleciono em caixas
remorsos antigos
Não existem janelas
nestes aposentos
e a única lâmpada
ainda nova queimou
As paredes gastas
aceitam o mofo
do modo que aceito
o oco dos dias
Nos meus subterrâneos
por que essa mania
de reter o já findo?
4
Fabrico holofotes
com minhas palavras
Cada gesto meu
produz um incêndio
Semeio lâmpadas na casa
no quintal crio vaga-lumes
Sou eu que toda noite
faço o parto da lua
Nos olhos e sorrisos
idealizo abajures
Adormeço meu frio
no colo do fogo
Com dedos de sol
amanheço a cozinha
Prendo estrelas em fios
e as vendo nas feiras
A claridade é meu ofício
5
Que sei eu das sombras
petrificadas em chinês
nas paredes da infância
Que sei eu dos muros
separando mundos
nos quintais da pátria
Nas mesmas palavras
dos mesmos livros
que sei eu de mim
Que sei eu
ignorante em didática
das aulas sonegadas
Eu que não sei nada
sendo parte de tudo
que sei eu do outro
Que sei eu, me diga
das manhãs e tardes
tecidas em silêncio
Órfão das noites
paginando lendas
que sei eu das luas
Na ciranda do tempo
que sei eu da face
que move os espelhos
Poema premiado no 43º Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), no Paraná
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