A MORTE SOZINHA
(primeira de duas partes)
á tempos o dever profissional levou-me ao Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro.
Desgraça por todo lado. Ali, a mãe em prantos, lamentando o filho assassinado por uma bala perdida; acolá, o filho inconsolável, chorando a morte do pai, vítima de um enfarte fulminante.
O rapaz negro me reconheceu. O que eu estava fazendo no IML? Não o conhecia, mas respondi. E ele, quem era e por que se encontrava naquele triste lugar?
– Sou o Tião, moço. Vim ver minha velha amiga, morta ontem, quando atravessava a Avenida 28 de Setembro, lá em Vila Isabel. O ônibus a pegou e jogou longe. Dizem que ela morreu na mesma hora. Vim reconhecer o corpo.
A curiosidade de repórter ficou aguçada.
– Era sua parente?, indaguei.
– Não era, não, moço, apenas uma grande amiga.
Ficamos, então, sentados num banco, por alguns instantes em silêncio. Tião, que devia ter uns 15 anos, foi quem o quebrou, ansioso para me contar o caso em detalhes:
– Eu acho que a história dessa minha amiga merece ser publicada naquela seção que o senhor escreve. Acho que merece, sim. Ela chamava-se Leonor e tinha 70 anos de idade. Talvez até mais, não sei bem. Desde menino eu vinha apreciando o que ela fazia. Acontece, moço, que eu sou engraxate, lustro os sapatos dos bacanas ali bem perto do Ponto de Cem-Réis, em Vila Isabel... o senhor conhece, não?
Faz uma pausa, acende um cigarro e prossegue:
– Pois é isso aí. Dona Leonor tinha uma mania: cuidar de gente doente. Era saber que na casa tal havia um enfermo, pra se mandar pra lá, pronta pra ajudar a família do necessitado. Lembro-me de quando o filho do Zeca Peixeiro andou de pulmão furado, com uma medonha tuberculose comendo-lhe as entranhas. Dona Leonor ficou um tempão na casa dele, cuidando de tudo, dando injeção no tísico, fazendo os remédios amargosos descerem pela goela do infeliz, controlando a febre do rapaz com o termômetro. O pobre coitado não se salvou, mas, enquanto vida ele teve, dona Leonor não saiu do seu lado, mais dedicada do que qualquer enfermeira.
(Dona Leonor merece duas partes. Leiam a segunda na próxima crônica)
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