Letra Livre: Atrasa o trem na estação de Bergen.

Por Sérgio Bernardo
sexta-feira, 07 de novembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Herta Sommergaard com seus cem olhos dirige a cabeça ao homem nu. Toca a cruz no peito. Mesmo assim percorre sem pressa o sexo à mostra.

A estação está vazia, apenas o bilheteiro por trás das grades cochilando como o gato a seus pés. Silêncio de chumbo. O vento e a chuva açoitam.

Nu, o homem que ela achou bonito – cabelos louros, azul profundo nas órbitas margeadas por olheiras – se move. Cortes e sangue coagulado se espalham ao longo do corpo. Enorme mancha roxa cobre o tornozelo bem feito. Para ele não existe Herta Sommergaard no mundo. O olhar atravessa o corpo da mulher como se faz com vidraça. Uma escolta, além, precisa ser localizada. Nenhuma. Alívio. E também o homem nu procura algo esquadrinhando todas as direções do espaço. Num canto, caído, o saco de aniagem dos trabalhadores do campo. Ele o pega e enrola no corpo se transformando num embrulho com um nó sobre o ombro. A mulher assiste a tudo acreditando viver uma irrealidade.

Só então Karl Gniersk, enfim se achando com direito a um nome e uma vida, olha a outra nos olhos. Sorri e murmura: “Bom dia, senhora”. Ao aceno polido de Herta Sommergaard, sinal de simpatia, senta a seu lado e conta sua história.

– “Saio do mais triste lugar a que um homem já foi... Há lá ainda muitos outros, com tantos ferimentos, que enquanto lhe dirijo estas palavras, um de meus companheiros de cárcere terá morrido. Eles nos julgam criminosos apenas por termos nascido. Sua ideologia nos quer mortos, extirpados da sociedade que com apego lutam por manter conforme recebida de seus pais. Entre eles há homens brutos também, que fazem todo o serviço sujo. A maior parte porém é douta: cientistas alguns, políticos, magistrados, homens de todas as classes e profissões liberais. Têm dinheiro, poder, prestígio. Adulam-se sem cerimônia, se compram e se vendem com admirável facilidade. Vês, senhora, aquele bosque longe? Por trás dele há muros altos e, além, uma construção fortificada. Nossa prisão. O campo de concentração de Bergen para homossexuais masculinos. Foi construído também um similar feminino, em Halle. As mortes, aqui como lá, acontecem por doenças, as mais dolorosas, mas dezenas por suicídio. Amigos da juventude vi se jogarem da torre ao fosso. Ninguém tentou impedir, porque assim se economiza nas balas de fuzil. Vou relatar como escapei...”

O vento, mais forte, traz uma folha de jornal e Karl Gniersk busca a data: 10 de outubro de 2066.

O trem-bala chega. Ao partir, 20 minutos depois, levará duas mulheres. Uma delas sem sapatos.

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