Notas de um Moleque Desocupado - 25-10-08

sexta-feira, 24 de outubro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Ele tinha o que a opinião comum costuma chamar de alma de artista. Aquela fagulha atormentada dentro de si que está sempre viva e queima nos horários mais impróprios. O único problema é que ele não era artista. Não pintava, não compunha, não escrevia, não representava, sequer fazia performances com fantoches. Nada. Ele simplesmente não era artista. Mas tinha uma daquelas almas. Merda. A vida pode ser injusta pra burro de vez em quando. Era como ter câncer de pulmão sem fumar.

E como qualquer um que tem um negócio desses, ele precisava botar pra fora. Caso contrário, morreria entupido em menos de uma semana. Não tinha arte, por isso optou pela boa e velha “trilha de destruição”. O que por sua vez não era novidade. Vários artistas apelaram para a trilha de destruição quando a arte não era suficiente e ainda sobrava um pouquinho do negócio no fim do dia.

Foi quando ele entrou no restaurante.

Três pessoas o esperavam numa mesa ao fundo. Dois caras, uma mulher. Ele se sentou de frente para os três.

– Você está atrasado cinco minutos – falou um deles.

– É – ele respondeu, pegando a garrafa de vinho e bebendo tudo no gargalo.

Os três olhavam sem entender nada.

– Esse vinho era pra durar a noite toda.

– Nada deve durar a noite toda – ele retrucou.

Soltou um arroto lânguido e se recostou na cadeira.

A conversa seguiu trivial por uns vinte ou trinta minutos. Ninguém falava nada que merecia menção; nem as três pessoas da mesa nem ele. Depois de vinte ou trinta minutos de conversa corriqueira, ele estendeu o braço na mesa e pegou a faca que estava ali. A lâmina reluzia sob as luzes artificiais.

Ele a empunhou com um ar homicida na cara.

Os três o olharam completamente aterrorizados e embasbacados.

– Que tipo de loucura você está pensando em fazer?! – gritou um dos três.

Ele olhava para os três; a faca olhava para os três; e a espera era insuportável.

– Largue já essa faca – gritou um outro.

Mas ele não largou. Ao invés disso, mergulhou a faca na manteigueira e começou a passar manteiga no próprio rosto. Besuntou o rosto até ficar completamente amarelo.

Em seguida, o auge da noite. Levantou da cadeira, foi até um canto no fundo do restaurante, baixou as calças, ficou agachado e começou a forçar o estômago.

– Você é completamente louco – gritou a mulher.

– Só estou evacuando.

– No meio do restaurante? – gritou um deles.

– Com a cara cheia de manteiga? – completou o outro.

– É, por que não? – ele respondeu.

Não demorou e foi posto para fora do restaurante por dois leões-de-chácara. Foi embora para casa, cambaleando, com o luar se derramando em cima dele. E a trilha de destruição o seguia como o rastro molhado de uma lesma. Arrancou a flor de um canteiro e amassou todas as suas pétalas.

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