Era difícil desassociá-la do seu velho e remendado saco de papel sujo. Nega Sofia caminhava curvada ao peso do mesmo e era a trapeira mais popular do bairro carioca de Vila Isabel daqueles ontens. E nisso já se vão muitos anos, que esta história tem mais de setenta.
Quando o papel estava escasso, Nega Sofia pedia garrafa vazia. E sempre havia quem dava, que um casco não valia tanto assim. Raramente, e só quando a fome apertava pra valer, é que ela solicitava um pouco de comida. E o fazia não com a humildade costumeira dos pedintes, mas com a arrogância de quem não precisa:
– Me arranja um mastigo aí, madame!
Ninguém se importava com isso, pois Nega Sofia não era de fazer mal a quem quer que fosse. E aparecia a comida, quase sempre colocada numa velha lata, que ela levava dentro do saco. Sentada no meio-fio, Nega Sofia comia com as mãos, sem dar a mínima para os passantes.
De criança gostava muito. E apesar do seu mau aspecto, os meninos retribuíam-lhe a amizade. Nenhum deles era capaz de ofendê-la, ou mesmo pilheriar com ela. Por incrível que pareça, o mais moleque dos moleques do bairro a respeitava. Formavam roda em torno de Nega Sofia para ouvi-la contar histórias do tempo da escravidão, que a trapeira ouvira da boca de “mamãe Eulália” que, se viva fosse, tudo confirmaria.
– Tu foi escrava, Nega Sofia? – indagava o Nequito.
– Esconjuro, credo-em-cruz! Nega Sofia já nasceu livre. Isso de escravo é coisa de muito antigamente, dos tempos do Imperador.
Tinha um herói predileto, não se sabe se verdadeiro ou fruto de sua etílica imaginação. Tião Medalha, um escravo de peito largo e muita coragem, que fugira do cativeiro para defender sua gente.
– Naquele tempo, meus meninos, a polícia batia pra valer. Um dia agarraram Tião Medalha. Deram tanta chibatada no infeliz, que ele acabou com as costas arrebentadas e sangrando muito. Mas agüentou firme e não disse pra onde tinham fugido os três escravos da fazenda de seu Chico Pedreira.
Um dia correu a má notícia para a garotada do bairro: Nega Sofia fora atropelada! Bebera bem além da conta e, ao atravessar a rua, fora colhida por um automóvel em disparada. Estava toda arrebentada no Pronto Socorro. O caixeiro do armazém de secos e molhados da esquina, que a conhecia melhor, contou o mais triste da história:
– Eu estive no hospital. Nega Sofia está bem ferida, mas muito preocupada com os meninos...
– Meninos? Que meninos? – indagou um dos garotos.
– Os seus filhos. Tem três, que moram com ela num barraco. Um deles, o mais velho, trabalha de engraxate. Os outros dois, uns ticos de gente, só servem pra brincar, comer e dormir. É a Nega Sofia quem sustenta a família com o dinheiro da venda de papel velho e garrafa vazia. Agora ela está com medo que a polícia vá até sua casa e carregue os guris para o Juizado.
Os meninos do bairro reuniram-se num conselho infantil. Depois, saíram todos à cata de papel velho e garrafas vazias. No fim da tarde juntaram-se novamente, para verificar, bem alegres, que tinham conseguido bem mais do que esperavam. Porque todos, no bairro, ao saberem da intenção da garotada, haviam colaborado. Pilhas de jornais e vasilhames vazios atestavam a bondade daquele povo. Dinheiro, os guris não aceitaram, porque um dia Nega Sofia havia dito: “Esmola, não. Quero ganhar meu dinheiro com o suor do meu rosto, como Deus mandou. Um prato de comida, ainda vá lá”.
O caixeiro do Armazém Triunfo encarregou-se da venda do espólio. E foi ele quem, no mesmo dia, levou a quantia obtida ao barraco de Nega Sofia. Enquanto ela esteve hospitalizada – e isto levou um mês –, os guris do bairro encarregaram-se de manter a família da trapeira. E quando Nega Sofia teve alta e reapareceu novamente, ainda andando com dificuldade, de saco às costas, lá estavam todos eles para recebê-la.
Nesse dia, entretanto, Nega Sofia não lhes contou nenhuma história de escravos. A voz ficou presa na garganta. E as lágrimas correram livres, marcando sulcos no seu rosto escuro.
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