Ele é médico na cidade de São Paulo, mas, por motivos que vocês compreenderão ao lerem a história, pede que omita o seu nome, bem como o de sua esposa, que o acompanhava na noite da tragédia.
Aconteceu há alguns anos. O casal vinha de carro pela Rio-São Paulo, em direção ao então estado da Guanabara, quando, pela altura da cidade paulista de Queluz, cruzaram com um desastre. Diminuindo a marcha do veículo, viram que se tratava de algo terrível: um ônibus chocara-se com dois automóveis e havia corpos espalhados pelo chão, a maioria aparentemente mortos.
– Vamos parar? – indagou a esposa.
Pensou um pouco, antes de responder:
– Acho que não é necessário. Já há bastante gente em redor e aquelas ambulâncias devem estar dando a ajuda necessária...
– Talvez você pudesse ser útil – comentou ela.
– Não acredito – retrucou ele, mostrando-se egoísta a seguir: – Estamos indo para um casamento. Morte não combina com véu e grinalda.
O carro andou mais alguns quilômetros noite adentro, sem que dessem uma só palavra. Foi quando os faróis do veículo bateram na mulher que, no meio da estrada, acenava desesperadamente. Por incrível que pareça, eles eram o único automóvel que seguia naquela direção.
Quando chegaram mais próximos, notaram que a pobre coitada estava toda ensangüentada. Pararam o carro ao lado dela.
– O que aconteceu, minha senhora? – perguntou o médico, certo de estar na presença de uma pessoa atropelada.
– Os senhores não viram um terrível desastre lá atrás?
– Vimos, sim.
– Eu fui uma das vítimas...
– Pois, então, entre aqui no carro que vamos levá-la para o hospital mais próximo.
– Não, não, por favor, eu posso me arranjar. Voltem, eu imploro, ao local do desastre...
– Pra quê, minha senhora?
– Eles estão recolhendo todas as vítimas e colocando as pessoas mortas na estrada, umas ao lado das outras... uma delas, no entanto, ainda está viva... é uma criança...
– Como a senhora sabe disso?
– Não importa. Voltem, pelo amor de Deus!
– Mas, e a senhora? Não quer vir conosco?
– Não percam mais tempo comigo. Voltem! – gritou a mulher em desespero.
Até hoje ele não sabe o que o fez agir daquele modo. O certo é que, no primeiro retorno, tomou o outro lado da estrada e dirigiu o carro até o local do sinistro.
Depois de estacionar o veículo a alguma distância, deixando a esposa dentro dele (“É melhor você ficar aqui. Não há necessidade de ver tanta desgraça”), foi até onde estavam os corpos. Identificando-se como médico, começou a procurar uma criança entre os mortos. E deu com ela, uma menina de alguns meses de idade, aparentemente sem vida.
Abaixou-se para examiná-la e sentiu as tênues batidas do seu pequenino coração. Pressionou-lhe o peito e a menininha ferida voltou a respirar normalmente. Chamando um médico presente, entregou-lhe a criança, que foi levada às pressas para uma ambulância.
Foi aí, então, que ele olhou para o corpo estendido em frente e teve um sobressalto: era a mulher que momentos antes fizera seu carro parar na estrada!
– Quem era ela? – indagou a um policial.
– Passageira do ônibus. Deve ter morrido instantaneamente.
Desta vez foi o PM que olhou em redor e sentiu falta de algo:
– Ué, a filhinha dela também morreu. Mas onde está o corpinho?
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