Quando saía de casa, Vitalina carregava com ela a casa. E de nada adiantava tentar convencê-la do excesso de carga, porque ela não escutava. Simplesmente trancava os ouvidos e balançava os ombros com desdém, lançando a quem lhe aconselhava o mesmo olhar que dirigia aos estúpidos. “Onde já se viu deixar a casa em casa?”, perguntava com ar de reprovação. Ao conselheiro restava o silêncio e, na medida das hipóteses, a resignação de ajudá-la a carregar a sacola...
Certa vez, um conselheiro mais intrépido, recém-saído de um curso de Física, bem que tentou demonstrar a impossibilidade “física” do deslocamento das casas pela cidade. Vitalina, que naquele dia estava na posse do seu melhor humor ( ou quem sabe interessada nas leis da Física ), deixou que o pobre infeliz traçasse uma profusão de cálculos, retas, curvas, pontilhados, vetores e incógnitas sobre pilhas de papel.
Ao chegar na última folha, após uma exaustiva exposição do deslocamento da massa no espaço, o físico arrematou os cálculos com um pomposo resultado: IMPOSSÍVEL! Vitalina ficou por momentos em silêncio, rodando os polegares em direções opostas. Eu, que já conhecia o trajeto desses dedos e sabia muito bem aonde eles podiam chegar, bem que tentei impedir o desfecho, convidando o físico para conhecer as gardênias que acabavam de florescer. Mas os homens de ciência são teimosos e entre gardênias e definições sempre optam pelas últimas. Assim ele preferiu se agarrar aos seus cálculos e fechar os olhos para o trajeto assimétrico da curva dos polegares.
Se ele tivesse prestado atenção no movimento dos dedos de Vitalina, não ficaria tão espantado com a resposta que ela deu aos seus cálculos. Se pelo menos tivesse medido a trajetória e o ritmo daquelas curvas, não teria ficado com cara de tolo ao ouvir sua resposta. Ah, se ele tivesse apreendido aquele instante em que as curvas, dando um rodopio no tempo e no espaço, cessaram o movimento com movimento e pararam em lugar nenhum, isso o impediria de expor a face da burrice quando ela, categórica, lhe disse: “Onde já se viu deixar a casa em casa!”.
Depois dessa resposta, Vitalina virou de costas e foi preparar a casa para um passeio. Na bolsa guardou o banheiro, o quarto e a sala. Na gola do vestido pregou a cozinha com um broche. No bolso da saia abrigou o quintal e os móveis. Abriu as janelas por detrás dos olhos e escancarou as portas do coração. Não levou chaves. Não trancou recintos.
Marcia Frazão
Texto extraído do livro
A Casa da Bruxa - Editora Planeta.
Blog: www.marciarfrazao.blogspot.com
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