Muitos dizem — e, na verdade, não há quem negue — que a única certeza da vida é a de que um dia todos a perderemos. Mesmo sabendo da total veracidade dessa afirmativa, nenhum de nós tem a capacidade de se preparar o bastante a ponto de não sentir a dor da perda. Principalmente quando isso acontece de maneira completamente inesperada. Mas como será o sofrimento de uma família que não teve a oportunidade de dar o último adeus, de velar aquele que, da noite para o dia, passou a estar presente apenas nas lembranças, numa morte sem corpo e nem tampouco funeral? Mais do que tema de filme, essa triste situação se transformou em realidade para algumas famílias da Região Serrana na assustadora madrugada de janeiro de 2011. E até hoje, quatro anos depois da tragédia, essa história permanece sem fim.
Era ainda de madrugada quando a dona de casa Maria das Graças Souza Bastos, moradora do Córrego Dantas, começou a perceber que aquela chuva era diferente de todas as outras que já havia testemunhado. Sem conseguir dormir, ela se levantou da cama para ir até a varanda. Ao passar pela cozinha seus pés ficaram molhados, sinal de que a chuva já havia invadido a casa. Assustada, Maria chamou pelos filhos — que moravam numa casa aos fundos — com medo de que alguma barreira pudesse ter atingido a residência. Eles surgiram desesperados, achando que os gritos da mãe significavam que o pior havia acontecido ao pai, já debilitado em decorrência de problemas cardíacos. Mas não, ele estava bem. Aparentemente fora apenas um susto. O problema era que a tempestade não passava, e a família percebeu que havia algo de muito estranho acontecendo. Barrancos começaram a descer e levar casas inteiras, pedras se desprenderam da montanha, rolando morro abaixo. Aflitos, Maria, o marido, netos, filhos e vizinhos se refugiaram em uma garagem e passaram aquela longa madrugada clamando por misericórdia.
Ao mesmo tempo, naquela noite, a dona de casa Vania Maria dos Santos Siqueira agonizava em cima de uma cama no Hospital Municipal Raul Sertã. Não por causa de enchentes ou deslizamentos, mas devido a uma infecção generalizada, em consequência de complicações causadas por problemas no sistema digestivo. No leito hospitalar, Vania jamais poderia imaginar o que estava acontecendo, a não ser pelo sonho que teve com o irmão, com quem era muito apegada. "Vi meu irmão sem camisa, com uma bermuda bege e um cordão, e ele me dizia que estava bem, em um bom lugar, e que ninguém deveria se preocupar com ele. Aquele sonho parecia muito real. Fiquei desesperada e comecei a gritar”, conta a dona de casa.
De fato, aquela noite foi atípica. O volume de chuva alcançou níveis nunca vistos e, ao amanhecer, a destruição era vista por toda parte. No hospital, Vania presenciava um filme de terror: corpos mutilados chegavam aos montes. Foi naquele momento que a dona de casa percebeu o cenário de desolação da cidade. Enquanto isso, Maria das Graças era levada do destruído Córrego Dantas para um abrigo no bairro de Olaria.
Ainda no hospital, Vania recebeu, de maneira insólita, a notícia que não gostaria de ouvir. "Estava deitada na cama, sem conseguir segurar sequer um copo de água, quando ouvi uma senhora conversando com uma moça que estava internada na cama ao meu lado. Ela dizia que um casal muito simpático e prestativo, de Córrego Dantas, havia morrido e que era uma pena, porque todos sempre compravam gás de cozinha com aquele homem. Ouvindo a conversa, perguntei qual era o nome do tal rapaz e, na resposta, confirmei que o casal era meu irmão e sua esposa. Entrei em um desespero tão grande que consegui ter forças para puxar os cabelos daquela mulher e gritar por ele. Aquilo não podia estar acontecendo.”
Dez dias depois da tragédia, Vania estava em um hospital no Rio de Janeiro, transferida devido ao grave estado de saúde. No mesmo período, Maria das Graças recebeu a notícia da morte de sua mãe, do irmão e do padrasto. Além de sentir o imenso vazio e a dor da perda, o sofrimento de ambas era ainda maior, já que nem a cunhada de Vania nem os parentes de Maria puderam ser velados. Nestes casos, nem a distância nem a demora da comunicação das mortes eram as justificativas para as duas. Os corpos dos quatro nunca foram encontrados.
Entre mortos e feridos, uma interrogação
Em toda a Região Serrana, 917 pessoas foram dadas, oficialmente, como vítimas fatais da catástrofe, sendo 442 em Nova Friburgo. Entretanto, a dúvida quanto à precisão dos números ainda permanece. Em qualquer conversa informal sobre o assunto pelas ruas do município ouve-se este questionamento. "Só perto da minha casa muitas pessoas morreram. O problema é que morto não faz cadastro”, diz a aposentada Maria Dilma Nepolicemo da Silva, moradora de Córrego Dantas há mais de trinta anos.
A equipe de A VOZ DA SERRA procurou por informações que comprovassem ou descartassem essas suspeitas. Diversas publicações da época e de meses posteriores foram consultadas, mas nada que nos levasse a uma conclusão. Entramos em contato com o Ministério Público no Rio de Janeiro (MPRJ) e também com a Energisa, empresa responsável pelo fornecimento de energia no município, cujo diretor na época, Marcelo Vinhaes Monteiro, relatou a um jornal do Rio de Janeiro que 887 unidades consumidoras de Nova Friburgo haviam deixado de existir logo após a tragédia. A nosso pedido, a concessionária realizou um levantamento, e confirmou os dados da reportagem.
De acordo com o MPRJ, 442 pessoas morreram em Nova Friburgo em decorrência da tragédia climática. O órgão afirma que 13 corpos ainda não foram identificados, e que 16 pessoas permanecem desaparecidas.
Como a aposentada Maria Dilma, Maria das Graças também engrossa o coro dos que não acreditam nesses números, mesmo sendo eles oficiais. Dos três parentes que esta última perdeu, dois deles não constam na lista dos desaparecidos divulgada pelo Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID) do MPRJ. "Estávamos no abrigo quando chegaram uma enfermeira e uma assistente próximo de nós. Sabia que aquilo significava notícia ruim, mas não imaginava que ela me daria a notícia da morte da minha mãe, irmão e padrasto. Eu não fazia ideia de que a calamidade também tinha sido grande em Vieira, onde eles moravam. Depois de um tempo, fomos à Defesa Civil de Nova Friburgo e eles disseram que nada mais poderia ser feito.” A família de Maria recebeu o atestado de óbito apenas da mãe, cerca de três anos depois.
"Há pouco tempo vi uma mulher muito parecida com minha mãe. Fiquei tão assustada que parei e fiquei olhando fixamente para ela durante algum tempo. Percebi que ela estava incomodada com aquilo e me afastei, conformada. Tem dias que sento, choro e fico muito triste. A gente sabe que eles se foram, mas ninguém faz mais nada para achar os corpos”, conta Maria, nos mostrando o trauma e as cicatrizes que as perdas sem despedidas causam.
Outro que acredita que o número de mortos é bem maior é o cartunista Dil Marcio: "Apenas para citar um exemplo, na época eu soube que na região denominada Prainha, na estrada Teresópolis-Friburgo, próximo do local onde resido, algumas pessoas foram soterradas e os corpos permaneceram lá. Não soube se foram desenterrados. Acredito que a quantidade de desaparecidos tenha sido muito maior do que os números que foram ‘oficialmente’ divulgados”, diz ele, que logo após o evento climático criou o movimento ReNova Friburgo para elevar a autoestima da população.
Vale ressaltar que o MPRJ afirma que o trabalho de busca pelos desaparecidos não foi concluído, conforme e-mail enviado para a nossa redação e assinado por Hédel Luís Nara Ramos Júnior, da Promotoria de Justiça Cível de Nova Friburgo: "Diante do reduzido número atual de corpos não identificados e de desaparecidos, o MPRJ, através do PLID [Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos] e desta Promotoria de Justiça Cível ajustou com o IPPGJ [Instituto de Pesquisas e Perícias em Genética Forense da Polícia Civil do ERJ] o confronto genético entre o DNA colhido dos corpos não identificados e os DNAs dos parentes dos desaparecidos. Esse trabalho ainda não está concluído em razão da não localização de parentes dos desaparecidos que sejam elegíveis ao confronto genético e pela não localização, em um dos casos, de nenhum parente ou pessoa de contato com o suposto desaparecido, sendo hipótese de se cogitar de registro de desaparecimento realizado por motivo diverso da tragédia”.
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