Marcelo Freixo: "Crime e política representam a mesma coisa em alguns territórios do Rio de Janeiro"

segunda-feira, 26 de maio de 2014
por Jornal A Voz da Serra
Marcelo Freixo:
Marcelo Freixo: "Crime e política representam a mesma coisa em alguns territórios do Rio de Janeiro"

Márcio Madeira

O deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ) dispensa apresentações a qualquer cidadão brasileiro que tenha acompanhado com interesse os principais episódios da política nacional ao longo dos últimos anos. Notório por ter presidido a CPI que investigou as milícias no Rio de Janeiro, Freixo já teve de se exilar duas vezes no exterior em razão de ameaças de morte. Sua atuação em defesa dos direitos humanos chegou aos cinemas, inspirando o personagem Diogo Fraga no filme Tropa de Elite 2. Nesta entrevista exclusiva, Marcelo fala sobre o que encontrou em sua recente visita a Friburgo, relacionando os problemas observados aos principais desafios que identifica no caminho das cidades e da democracia brasileira. 


A VOZ DA SERRA: Como o senhor avalia sua visita às comunidades do Córrego Dantas e do condomínio Terra Nova?

Marcelo Freixo: Eu presido a Comissão de Direitos Humanos, e fui chamado por um conjunto de moradores, principalmente através do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, que é uma organização do Leonardo Boff. Eles disseram que havia uma série de problemas com os desabrigados em vários municípios da Região Serrana, e gostariam que a Comissão atuasse no caso. Atendemos de imediato. Estive em Petrópolis e Teresópolis, fui a vários lugares atingidos, a vários lugares com a iminência de problemas graves, e em Friburgo fiz a mesma coisa. Conversando com a sociedade civil e visitando os moradores, ouvindo in loco, filmando e documentando. Tudo para embasar a realização de uma audiência pública [realizada no último dia 20] de perfil pedagógico. O protagonismo é dos moradores, e desse encontro vamos tirar uma série de resoluções e propostas que serão encaminhadas às autoridades públicas. E vamos também fazer um documentário para ser exibido na internet, que tem sido uma grande aliada, é um instrumento muito eficaz. Porque na verdade, a sensação que se tem, por parte da opinião pública geral, é de que já se passaram três anos e os problemas de Friburgo estão resolvidos. Ninguém fala mais dos problemas. E quando a gente visita vários lugares, vê que as pessoas estão enfrentando problemas graves!


De que forma o que o senhor viu conflita com a imagem que se tem de Friburgo? 

Primeiro a alta densidade populacional do Terra Nova não é, no meu entendimento, o melhor caminho. Segundo: existe uma quantidade enorme de pessoas que tinham imóveis de boa estrutura, e que não querem trocar por um apartamento de 48 m². Muitas vezes não há nem condição de moradia, dependendo do tamanho da família. Muitas pessoas não receberam o apartamento, muitas pessoas recebem o aluguel social, mas em valor incompatível com os imóveis que estão conseguindo alugar. Existe uma série de problemas estruturais. Lá em Córrego Dantas, a escola municipal está fechada, a creche funciona numa garagem, a escola funciona em uma casa, com número de vagas menor, em um turno só. Problemas sérios de transporte, de dragagem, de moradia. Então a imagem que se passa de tudo resolvido contrasta em absoluto com o que se encontra quando você visita um lugar desses. Em Teresópolis, por exemplo, eu fui a uma região onde existem 11 mil pessoas morando em área de risco... 


No seu entendimento são problemas de direitos humanos?

Os problemas de moradia, de dignidade, da democracia, são problemas de direitos humanos.


O Rio recebeu recentemente a visita do professor de psiquiatria Carl Hart, falando que as drogas, mais do que uma causa, são a consequência de problemas anteriores. Problemas de falta de estrutura, de saneamento, de educação, de suporte por parte do governo, de falta de confiança em relação aos governantes. No seu entendimento, esses problemas observados na Região Serrana devem ser entendidos e tratados como possíveis causas para problemas sociais futuros, como o fortalecimento do tráfico de drogas e a formação de milícias?

Eu penso que sim. Entendo que o debate da droga é central, mas que fundamentalmente ele deve ocorrer junto ao debate sobre territórios - que, aliás, tem relação com o que conversamos com os líderes comunitários em Friburgo. O maior debate das grandes cidades hoje é aquele que envolve quatro elementos: Estado, soberania, governança e território. A relação entre esses elementos é fator determinante num projeto de cidade, de radicalização da democracia, que é cada vez mais necessário. A luta por direitos humanos hoje se coloca como novo paradigma da democracia. Porque o que está eliminado hoje não é só o emprego, não é só a moradia. O que está sendo eliminado hoje em dia é a própria dignidade humana. Existe um setor da sociedade que se tornou tão invisível que dentro dele as pessoas lutam simplesmente para conservar o mínimo de dignidade. Então, não é mais só a relação capital-trabalho no que diz respeito à questão salarial. Não é mais somente a exploração da mão de obra. Quando você visita hoje uma pessoa nessas condições... Basta dizer que nenhum morador com quem eu conversei falou comigo sobre salário. Existe na verdade um nível de exclusão tão violento que passa pela questão de ser considerado humano. O desafio central da democracia hoje é olhar para esse setor invisível, que não é mais sequer associado à humanidade. Tanto assim que é comum qualquer militante dos direitos humanos — e você pode imaginar quantas vezes eu já ouvi isso — ser acusado de ser defensor de bandido. 


Esse aspecto foi bem retratado no Tropa de Elite 2, inclusive, no personagem Fraga, que o senhor inspirou.

Sim, porque existe esse olhar sobre determinado setor da sociedade. Não é que essas pessoas não tenham mais direitos, é que elas não são nem consideradas humanas. Nem pense duas vezes... Esse condomínio Terra Nova, do jeito como foi construído, não vai demorar muito para o olhar, que hoje é um olhar de pena, se transforme num olhar de medo. Pode escrever o que estou te dizendo. Daqui a alguns anos, pelas condições em que aquilo foi feito, vai ser o olhar da criminalização da pobreza. E daqui a pouco o Terra Nova não vai mais ser um debate de moradia, e sim um debate de polícia.


Seria essa uma consequência do que foi discutido durante a audiência pública, o processo de terceirização do governo através da concessão de serviços de interesse público a empresas que, em última análise, visam o próprio lucro?

Exatamente. Nada contra as empresas. As empresas são muito bem-vindas, os negócios são bem-vindos. Mas a decisão do poder público tem que ser do poder público. Não pode haver prefeito agindo como um executivo dos interesses do capital. Prefeito é prefeito, ele foi eleito, ele tem interesse público. As cidades precisam ser pensadas para as pessoas, como espaço de direitos. Agora, se você entende as cidades como espaço do lucro, como espaço do investimento privado, então passa a haver conflitos. Claro que é preciso haver investimentos privados, claro que tem que haver oferta de emprego. Mas quem decide pela cidade tem que ser o poder público, à luz do interesse público. E não necessariamente tem que coincidir com os interesses privados.


O senhor se colocou em rota de colisão com a manifestação mais cruel desse tipo de conflito de interesses, que são as milícias. A pergunta é inevitável: como combater esse processo de transferência de controle, quando a questão envolve tanto dinheiro? Como enfrentar uma polícia que se corrompe, como enfrentar concessionárias que fazem obras que ferem a dignidade, buscando gastar o mínimo possível?

Milícia é máfia. E nesse debate que mencionei, de Estado, território, soberania e governança, o ponto mais crítico é a milícia. Porque a milícia é exatamente o domínio de território, por um grupo de agentes públicos do Estado, que tem a total governança sobre o lugar, eliminando a soberania dos moradores.


O senhor então não falou em soberania sob o ponto de vista nacional apenas, mas também uma soberania local...

Local! Territorial! Estou falando da relação com o território. A milícia é um domínio territorial armado de um grupo mafioso, poderoso, violento, formado e liderado por agentes públicos da área de segurança, em crescente domínio territorial no Rio de Janeiro. Elas não acabaram, pelo contrário. O número de milícias hoje é maior do que na época do filme [Tropa de Elite 2], e continua aumentando. Eles não têm mais a mesma visibilidade política, porque os seus chefes foram todos presos depois da CPI. Todos os donos de milícia foram presos. Mas elas continuam porque quando eles dominam um território, dominam as atividades econômicas. Dominam as vans, a TV a cabo, a compra e a venda de imóveis, a distribuição de gás... Toda a estrutura econômica do local. Funciona como uma máfia. Não é um Estado paralelo. É o Estado leiloado, porque ali o Estado são eles. Não existe a soberania do morador, mas sim a governança do crime. Crime e política representam a mesma coisa em alguns territórios do Rio de Janeiro.


Fortíssima essa constatação...

E com projeto de poder. Elegendo vereadores, elegendo deputados, concorrendo, frequentando palácio, sendo base eleitoral... Porque a milícia é a única experiência que a gente tem em que o crime organizado transforma domínio de território em domínio eleitoral. O tráfico não faz isso. O tráfico é violento, tem que ser enfrentado, o tráfico é tirânico. Mas o tráfico nunca transformou o seu domínio territorial em domínio político. Porque o tráfico não disputa o Estado. A milícia transformou o domínio territorial em domínio eleitoral, em curral eleitoral. E aí se torna uma ameaça ao Estado democrático de direito.


Hoje o senhor é muito mais uma autoridade social do que um deputado estadual. Poucas pessoas têm contato tão próximo com o que a sociedade gosta de empurrar para debaixo do tapete. Por isso não é possível encerrar essa entrevista sem perguntar, esquecendo as limitações do que um deputado pode fazer, qual a sua visão sobre como a sociedade poderia se organizar melhor. Erros que o senhor tem observado, coisas que poderiam funcionar de maneira diferente, sugestões... Espaço aberto, enfim, para que o senhor compartilhe um pouco de sua experiência ao longo desses 20 anos de atuação, nos quais o senhor pagou caro, como a perda de seu próprio irmão, assassinado por milicianos.

Eu vou te responder à luz do que a gente viveu nas manifestações de junho do ano passado. Durante a campanha para a prefeitura do Rio, em 2012, a gente percebia que tinha alguma coisa acontecendo. Tanto assim que existe um filme que registrou os bastidores de nossa campanha, feito por uma francesa chamada Aude Chevalier, que ganhou o nome de "Rio Ano Zero”. Nesse filme, estrangeiro, tanto eu quanto o Marcelo Yuka dizemos que havia alguma coisa acontecendo e nós não estávamos entendendo. Principalmente entre a juventude, esse movimento de rua e de rede. E um ano depois a gente viu essa explosão de um milhão de pessoas nas ruas, os cartazes, as manifestações, aquela coisa que pegou todo mundo de surpresa - inclusive nós. Aquele movimento, de alguma maneira, dizia o seguinte: é necessário radicalizar a democracia; há uma enorme crise de representatividade; isso tem que mudar. Acho que essa é a mudança estrutural necessária. Não é um projeto de lei, não são medidas pontuais. O que tem que mudar é a própria relação estado-sociedade. O grito de "sem partido” serviria também para o Judiciário, Ministério Público... Não imagine que a sociedade se sente representada por esse MP que nós temos; pelos desembargadores que nós temos; pelo Poder Executivo em qualquer esfera; pelos meios de comunicação... Então há uma enorme crise de representatividade geral que vem desde as associações de moradores, dos sindicatos. O que foi a greve dos garis no Rio de Janeiro se não uma greve contra seu próprio sindicato? A greve dos rodoviários também. Então é uma crise generalizada de representatividade, porque a nossa democracia é absolutamente frágil. O nosso poder representativo hoje enfrenta o grande problema da não identificação do que é o interesse público. Boa parte dos nossos representantes públicos, no exercício do seu dever público, defende interesses privados. Inclusive seus próprios interesses patrimoniais. De alguma maneira a sociedade diz que não tem sentimento de pertencimento a essa relação de conflito entre projetos públicos e privados. E é no projeto de cidade que isso explode mais. Por que essas revoltas foram urbanas, e não rurais? Os temas, por mais que fossem muito variados, eram temas urbanos. Quantos cartazes sobre reforma agrária você viu por aí? Quantos cartazes contrários à escravidão no campo?


A questão indígena...

Justamente. Os temas eram urbanos. A mobilidade, a violência policial. Não havia cartaz contra os assassinatos no campo. Porque o que está explodindo é a vida na cidade. Os principais urbanistas têm afirmado que pela primeira vez na história do planeta existe mais gente vivendo nas cidades do que no campo - o que é irreversível, inclusive. Nos próximos 30 anos, 90% do crescimento populacional vai se dar nas cidades do hemisfério sul. Essas cidades vão concentrar o grande debate e as grandes contradições urbanas do mundo. É na cidade que essa crise de representatividade e essa crise da democracia afloram. Se tiver que apontar alguma coisa que deveria mudar substancialmente é a radicalização da democracia. É pensar em mecanismos de funcionamento da cidade que possam mudar o eixo de poder. Ações como a que fizemos em Friburgo deveriam ser permanentes por parte do poder público. Não tinha que ser um deputado estranho, um Forrest Gump, chegando aqui para conversar. Isso tinha que ser algo permanente, o prefeito e os vereadores tinham que fazer isso semanalmente. Tinha que haver reunião nos bairros, como fizemos aqui. Em áreas atingidas, como no Córrego Dantas, deveria haver reuniões permanentes, porque quem sabe o que precisa ser feito em cada lugar é quem vive no lugar. Se você visitar o Terra Nova por meia hora, como eu fiz, vai descobrir que os prédios não têm caixa-d’água, o que é inconcebível. Caixa-d’água! A cisterna já é luxo. Os moradores dependem da água que chega da rua... Ou seja, é uma carência elementar, não ouvem o morador. O eixo de poder, fundamentalmente, teria que mudar. As cidades podem e devem se organizar a partir de outro patamar, da participação efetiva das pessoas.


Através do estímulo à organização comunitária, e o diálogo direto com governantes?

Sim, eu defendi isso no Rio de Janeiro. Para que subprefeitura? Por que não trabalhar com conselhos de moradores, utilizando as estruturas do Estado que já existem? Numa cidade como Friburgo, desse tamanho... Seria possível ter um conselho por bairro! É muito mais fácil! Se poderia funcionar no Rio de Janeiro, por que Friburgo não faz? Esse conselho de bairro poderia formular documentos e propostas para o poder público acatar, criando um debate permanente. Porque aí nasce um sentimento de pertencimento, e as pessoas passam a cuidar do lugar em que vivem. Hoje, o que é público não é de ninguém.

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