Para abordar o fatídico golpe militar de 64, sua repercussão e consequências em Nova Friburgo, ouvimos o professor e coordenador do curso de História da Faculdade de Filosofia Santa Doroteia (FFSD), Ricardo da Gama Rosa Costa, o Rico. Ele tem muito a nos contar sobre aquele dramático episódio que marcou o país e vem sendo lembrado agora — quando completa 50 anos — por todos os veículos de comunicação, com novas e detalhadas revelações.
Formado em História pela FFSD, com mestrado e doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), Rico atua no Conselho Municipal de Educação e participa ativamente do Coletivo da Memória, Verdade e Justiça de Nova Friburgo, que luta pela criação da Comissão Municipal da Verdade, e tem muito a nos contar sobre a verdade histórica que marcou aquele período de chumbo.
A VOZ DA SERRA - Quais são as suas lembranças daquela época?
Ricardo Costa - Quando o golpe eclodiu, em 1964, eu tinha apenas três anos e meio, mas me recordo assim muito vagamente de estar com meu pai na Vemaguete dele e ficarmos parados num engarrafamento por causa de uma passeata da TFP. Ele saiu do carro irado arrancando aqueles estandartes vermelhos. Minhas primeiras lembranças são mesmo das propagandas do governo na década de 70, quando eu tinha 14-15 anos. Foi quando comecei a me inteirar do que estava acontecendo no país através do Jornal do Brasil, que publicava muito veladamente algumas denúncias de tortura. De 78 em diante, no final do governo Geisel, portanto, passei a participar do movimento estudantil, quando já havia aquela política do Golbery de uma abertura "lenta e gradual”. Foi quando retornaram os movimentos, tiveram início as greves no ABC e, em 1974, o MDB ganhou a eleição, tornando-se o partido da oposição.
Quando e por que você veio para Nova Friburgo?
Vim em 1981, quando participava do movimento estudantil. Naquele tempo, eu era vice-presidente no DCE da UFRJ e tinha a missão de procurar um delegado para o congresso da UNE. Como meus pais tinham uma casa de veraneio em Mury, fui convencido pelos militantes a ser candidato a vereador pelo MDB no ano seguinte, numa campanha cujo candidato a prefeito era o Paulo Azevedo. Tive até alguns votinhos, apesar de ninguém me conhecer. Na época, todos os partidos de esquerda estavam proscritos e atuavam por dentro do MDB e contra a Arena. Na verdade, eu pertencia ao MR-8, que já tinha feito uma autocrítica da luta armada e estava tentando ocupar os espaços possíveis para ampliar a luta pela democracia e contra a ditadura. Mas só vim morar em Friburgo no final de 1985 e, desde então, virei friburguense, com título de cidadão e tudo.
Sua visão sobre o golpe mudou desde então?
Claro que não. Enfatizo sempre que o golpe foi um movimento articulado e levado a cabo pelos militares, mas com uma base de apoio muito forte em setores da classe dominante, em setores empresariais articulados com o capital estrangeiro. Para estes empresários não interessava uma política nacionalista e, muito menos, um governo que dava voz aos trabalhadores. Não se pode, portanto, falar apenas num golpe militar, como tenho visto. Foi, isso sim, um golpe empresarial-militar, porque resultou numa articulação de forças. Muita gente se esquece, mas às vésperas do golpe, em fevereiro de 64, João Goulart concedeu um reajuste do salário mínimo muito significativo. Estas questões representavam para o empresariado uma ameaça a seus ganhos, a seus interesses capitalistas.
Foi um momento de muita agitação política...
Sim, havia muitas greves, porque o saldo do governo Juscelino foi, entre outras coisas, de uma inflação muito alta. Os grupos mais organizados, trabalhadores, estudantes, artistas, faziam protestos e manifestações. Houve, enfim, uma mobilização cultural muito forte. Diversos setores participavam ativamente das discussões políticas e o governo João Goulart dialogava com estes movimentos. Isso tudo era considerado muito perigoso pelos setores mais conservadores e, principalmente, por aqueles grupos capitalistas que queriam aprofundar o desenvolvimento do capitalismo, sem aceitar nem a opção nacionalista nem as reformas, como a agrária, por exemplo.
E aqui em Friburgo, como foi?
Primeiro houve uma certa ascensão dos trabalhadores, a nível político. A Câmara Municipal eleita em 1962 era composta por um grupo de sete vereadores oriundos de uma base de trabalhadores — os operários João Luiz Caetano e Newton d’Ângelo, o comunista Francisco Bravo, Sebastião Pacheco, funcionário do almoxarifado do Sanatório Naval, e o comerciário Celcyo Folly. Os sindicatos também estavam mais organizados. O que aconteceu? Foi eleito o Vanor Tassara Moreira, que era da UDN, mas atuava como se fosse do PTB, pois tinha uma amizade forte com lideranças daquele partido a nível estadual, inclusive com o governador Roberto Silveira. Já durante a campanha ele tinha entrado em choque com seu candidato a vice, o Heródoto Bento de Mello, que representava os empresários e era até chamado de "lacerdinha friburguense”, por suas posições.
Então...
O Vanor já tinha declarado que, se fosse eleito, o Heródoto não entraria na prefeitura. Ou seja, já havia uma rixa grande e, com o golpe de 64, Heródoto pressiona para que Vanor renuncie. Aí entra o papel, inclusive, do Sanatório Naval.
O Vanor, ao que parece, fez um governo desastroso. É verdade?
Havia uma forte oposição ao governo do Vanor e fizeram pressão para que ele renunciasse. Os jornais de Friburgo, todos eles — A Paz, O Nova Friburgo e o próprio A VOZ DA SERRA — faziam uma forte campanha contra ele. O alcoolismo era apresentado como uma justificativa moral para isso, mas certamente não foi só este o motivo que levou à ascensão do Heródoto e para que ele aparecesse até como a salvação do município naquele momento de crise. Vanor enfrentou a Faol, por exemplo, não aceitando o aumento das passagens. Colocou, inclusive, caminhões da prefeitura para levar os operários ao trabalho, assim como ameaçou a empresa com a possibilidade de encampação pelo município. Ele também apoiou o movimento dos ferroviários, categoria na qual era notória a força dos comunistas. Quando o Congresso aprovou uma lei do deputado comunista Themístocles Batista, o Batistinha, beneficiando a categoria e João Goulart determinou que o ramal de Nova Friburgo não seria extinto, os ferroviários organizaram um comboio especial chamado Trem da Vitória, que entrou em Friburgo todo enfeitado de bandeiras e badalando os sinos sem parar. Vanor foi fotografado num dos vagões, acompanhado de Batistinha e isso também fez parte do Inquérito Policial Militar que tentaria depô-lo.
Mas sua administração teve vários problemas, concorda?
Sim, é verdade, mas tem todo um folclore envolvendo o Vanor. Fica clara a articulação para a saída dele quando, na posse do Heródoto, compareceram todas as lideranças empresariais, os clubes de serviço, Rotary, Lions e representações da igreja. E o governo dele não interessava a nenhum desses grupos até porque, entre outras coisas, Vanor dialogava constantemente com os trabalhadores e apoiava os movimentos reivindicatórios por melhores condições de trabalho. Ou seja, sua deposição aconteceu principalmente em função do isolamento político em que foi colocado e de uma série de atitudes tomadas por ele consideradas polêmicas e contraditórias.
Deposição ou renúncia, esta era a questão?
Sim. Depois que renunciou, deu uma entrevista a uma revista da época chamada Zoom, onde afirmou, claro que em sentido figurado: "Renunciei com uma metralhadora nas costas”. No dia do golpe, várias testemunhas afirmaram que ele tentou até oferecer aos trabalhadores algum tipo de resistência, esteve nas portas das fábricas, lideranças sindicais foram para as fábricas convocando uma greve como protesto ao golpe, mas tudo isso foi abafado. Os jornais da época diziam que ele foi para as portas das fábricas empunhando metralhadora, que hasteou a bandeira do Brasil a meio pau na prefeitura, mas nada disso foi comprovado.
Então, instalou-se a ditadura...
E foi uma desgraça. Entre outra coisa, perdemos gerações de intelectuais, políticos e jovens. Até hoje a juventude ignora muita coisa que aconteceu. Observo que muitos professores de História privilegiam o império, o período colonial e republicano, por exemplo, deixando para depois a história mais recente do país. Por isso mesmo, nós, da Santa Doroteia, estamos numa campanha de ir às escolas para fazer esta reflexão com os alunos. Mas estou otimista. Percebo que existe hoje uma curiosidade muito grande. Outro dia, por exemplo, trouxemos o professor Dênis de Moraes para fazer uma palestra e muitos alunos do Colégio Estadual Jamil El-Jaick compareceram, demonstrando um interesse muito grande.
Mas muita coisa ainda precisa ser feita neste sentido, não?
Claro. Alguns afirmam que o golpe veio para moralizar. Como assim? Quando é que um golpe moraliza alguma coisa? O golpe de 64 institucionalizou o roubo, escancarou o Brasil, entregou o Brasil às multinacionais. Foi o período em que elas tiveram maior presença. Foi também o período em que contraiu mais empréstimos, uma dívida monstruosa que veio a estourar no governo Figueiredo. O que eu fico mais assustado é ver pessoas nas redes sociais falando que a ditadura deveria voltar, que naquele tempo não havia inflação, estas coisas. Como não havia? Só que com uma censura braba comendo solto e jornalistas sendo ameaçados e presos não havia como falar do que acontecia nos porões da ditadura. E hoje os torturadores vêm dizer que cumpriam ordens e até que não se arrependem em nada do que fizeram, pois se tratava de uma guerra. Ou seja, que arrancar dentes e dedos, tirar as vísceras das pessoas que eram presas, torturadas e mortas para que não boiassem quando eram jogadas no fundo dos rios ou do mar, se justificava. O que aconteceu não foi só um golpe, foi um terrorismo perpetrado pelo Estado. E também temos que pensar no seguinte: a luta armada foi uma forma de reagir, de resistir ao golpe. E era enorme a diferença entre o aparato repressivo e os grupos que resistiram, ou seja, era uma luta absolutamente desigual, de estilingues contra tanques.
E Nova Friburgo durante o período da ditadura?
Temos uma história importante, principalmente dentro do movimento estudantil, já que os demais setores tinham sido totalmente desarticulados. Daqui saiu, por exemplo, um estudante que chegou a participar da luta armada contra a ditadura no Rio e foi assassinado, o Mário Prata, que hoje dá nome ao DCE [Diretório Central dos Estudantes] da UFRJ. Mas a inquietação da juventude da época, até por falta de outras formas de se manifestar e se organizar, acompanhava o movimento hippie internacional. Aqui em Nova Friburgo aconteceu, por exemplo, o primeiro filme hippie do Brasil, "Geração Bendita”, dirigido por Carlos Bini.
Você se diz otimista, Rico. Então, diga: a seu ver, como está o Brasil hoje?
Eu acho que muita coisa deixou de ser feita, era de se esperar mais até mesmo dos governos pós-ditadura. Do governo Sarney não se podia mesmo esperar absolutamente nada, porque ele era sabidamente ligado à ditadura. Do Collor, menos ainda, pelos motivos mais do que conhecidos. Mas dos governos do PT era esperada uma mobilização maior no sentido de reformas sociais ou da reforma agrária, que não avançou praticamente nada. Também não houve uma ampla campanha de alfabetização. Outros países da América Latina acabaram totalmente com o analfabetismo. Esperava-se pelo menos isso do PT. O domínio secular do grande capital continua. A estrutura econômica brasileira continua extremamente desigual. Então, o que se espera do futuro governo é que os movimentos sociais retornem com força para tentar uma transformação mais radical da nossa realidade.
Para concluir, gostaria que me falasse sobre a proposta que está sendo articulada de criar aqui a Comissão Municipal da Verdade.
Já temos o coletivo da Memória, Verdade e Justiça, formado por entidades e pessoas que tiveram alguma participação naquele período, como Sérgio El-Jaick, o professor João Raimundo, o Valdeck Barreto, que era operário na época do golpe e participou das lutas junto com sua mulher, a professora Inês Breder, e foi obrigado a sair do país. Muita gente ainda está viva e tem muito a contar. A ideia da comissão, assim como as outras já existentes no país, é resgatar a memória daquele período em Friburgo, retomar a verdade histórica e tentar responsabilizar quem teve alguma participação em crimes contra os direitos humanos. Existe uma proposta concreta, por exemplo, da devolução simbólica dos mandatos, tanto do Vanor como do Francisco Bravo, principalmente do Chico, que foi cassado pela Câmara em 1964. E de rever alguns nomes de ruas e prédios públicos, como a Avenida Presidente Costa e Silva e o Pavilhão Emílio Garrastazu Médici, onde funciona a feira do Suspiro.
Deixe o seu comentário