Prof. R. Lengruber - Sec. Mun. Educação [Nova Friburgo/RJ] - www.lengruber.spaceblog.com.br
“O pior cego é o que não quer ver...”
A vida é uma realidade construída. O que nos sucede, pessoal ou coletivamente, está transpassado pelas mediações e interferências culturais, políticas, econômicas etc. A vida não é, somente, resultado mecânico de impulsos naturais, genéticos ou psicológicos. Não há, por assim dizer, pré-determinações.
O que chamamos vida—excluídas as questões de natureza orgânica—é uma coleção de lentes e laços pelos quais nos relacionamos com os outros e através dos quais significamos o que nos cerca.
O conhecimento—mesmo aquele de origem não formal—é uma das tantas formas de apreensão da realidade. Captação da realidade que gera sentido e outorga identidade.
A vida é uma realidade construída por meio dos tantos processos de apropriação da realidade que empregamos. Uns são claramente conscientes e deliberados. Outros, ao contrário, são inconscientes e, por conta disso, suscetíveis a influências e interferências nem sempre de boa índole.
Ao se voltar para fora de si, o ser humano lança mão de recursos para dar sentido e significado ao seu mundo. Noutras palavras, a identidade está de alguma forma condicionada pelo mundo do lado de fora.
São lentes que existem a despeito de se ter consciência ou escolha delas. São intermediadoras da forma como vemos e vivemos.
Lentes são religião, política, moral, família, educação etc. Lentes são decisivas no processo de construção da personalidade e da tomada de decisões. São, inexoravelmente, parte integrante daquilo que somos.
Como tudo que integra a identidade, as lentes devem se permitir sofrer mudanças e se ajustar com os novos cenários que têm diante de si.
O foco é essencial para que o que deve ser visto o seja com a maior claridade possível. Lentes devem ajudar a ver melhor ou permitir que o que não é possível de ser visto a olho nu seja captado por intermédio delas.
Essencial é que se atente dia após dia de modo que as lentes sejam adequadamente calibradas.
Por conta disso tudo, dada a constante instabilidade das lentes e dos cenários, é que se corre o risco de se cometer equívocos especialmente nocivos à forma como vemos e vivemos a realidade.
Há dois especialmente ruins. O primeiro equívoco tem a ver em confundir a lente com a realidade e torná-la fim em vez de meio. Lentes são modos de apropriação da realidade, mas não devem ser confundidas com a mesma. Quando isso ocorre, há uma profunda diminuição da magnitude da vida e, ao mesmo tempo, um superdimensionamento dos discursos e das ideias em detrimento dos fatos e das pessoas. Sempre que isso se dá afundamos no fundamentalismo.
Fundamentalistas são os discursos que não conseguem ver o que há no derredor. É a postura de quem se sente no centro do mundo e dono da verdade. As religiões são, necessariamente, fundamentalistas, porque sabem-se, nada menos que, salvadoras das almas. Mas há fundamentalismos em tudo: de futebol a política, de economia a cultura.
O outro equívoco devastador é não ter a sensibilidade de focar a lente para atender as demandas do que deve ser visto e captado. E aí ocorre a distorção. A realidade vista distorcidamente é pior do que a não percebida ou a captada fantasiosamente.
A distorção ocorre quando a lente de um tempo é usada noutro e as conclusões dela tiradas são absorvidas ingênua e, talvez, inocentemente.
Palco privilegiado disso são os discursos político-ideológicos. Quando ideias muito fortes de um tempo se eternizam como se fossem cabíveis em qualquer cenário. A isso dá-se o nome de anacronismo.
É como se gente da terceira idade ainda se vestisse com a moda dos adolescentes de seu tempo.
O que, curiosamente, não deixa de ser o mesmo fundamentalismo. Só que, nesse pormenor, um fundamentalismo eivado de acusações e rancorosidade.
Talvez esteja aí a raiz de tantos entraves no diálogo e nas negociações.
Há fundamentalistas que se tornam arrogantes e prepotentes, porque se enxergam detentores da verdade. Isso ocorre, contraditoriamente, nos grupos políticos, por exemplo, com os discursos aparentemente mais democráticos e participativos. Sob o manto do participativismo se esconde a mediocridade do imperialismo próprio do fundamentalismo. Tudo pode ser discutido, desde que sempre se chegue à conclusão previamente sabida! É uma espécie de ditadura desse arremedo pobre de democracia.
Há outros que se apaixonaram por tais lentes na adolescência; percebem-nas insuficientes no presente, mas não conseguem romper com a força de suas amarras. Tornam-se seres divididos e conflitados. Até porque perderão amigos e espaços. Sentir-se-ão desfocados.
Com mentes fundamentalistas não há espaços para discussão. Suas lentes se tornaram opacas com o tempo e já não são capazes de mediar a compreensão da realidade. Vivem noutro mundo e acreditam nele como se fosse o único possível.
Eis o desafio do nosso tempo: ajustar lentes, focar a realidade, respeitar as identidades.
Repito: o pior cego é que se recusa ver que as lentes precisam ser substituídas. A pior ignorância é a que não aceita que mentes são mutáveis e mutantes, queiramos ou não.
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