Maurício Siaines
O juiz Derly Mauro Cavalcante da Silva, titular da 2ª Vara do Trabalho de Nova Friburgo há três anos, tem procurado fazer do ambiente da Justiça do Trabalho algo menos carregado de hostilidades, apesar das tensões inerentes às disputas que chegam até lá.
Carioca, antes de Nova Friburgo, atuou em Angra dos Reis, em Curitiba, no Rio de Janeiro, em Macaé e em Cordeiro.
A partir da próxima quarta-feira, Derly Mauro assinará coluna em A VOZ DA SERRA, a qual pretende compartilhar com colegas convidados. Esta entrevista, concedida ao jornal em seu gabinete, na última quinta-feira, 24, é também uma apresentação e uma prévia do que será sua coluna. Ele procura estar disponível para a sociedade e, para isto, deixa na porta de sua sala o número de seu celular e seu endereço eletrônico, disponibilizando-os a quem deseje entrar em contato: (21) 8112-5202 / derlymauro@globo.com.
Abaixo, alguns trechos da entrevista.
A VOZ DA SERRA – Como tem sido sua experiência no Direito do Trabalho?
Juiz Derly Mauro Cavalcante da Silva – Advoguei durante 17 anos, fiz muitas coisas, trabalhei em diversos sindicatos, em diversas empresas, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Fui do Sindicato dos Bancários do Sindicato dos Metalúrgicos, do Sindicato dos Consertadores de Carga e Descarga, do Sindicato dos Estivadores, em Angra dos Reis. Nos meus sete primeiros anos de vida profissional trabalhei em entidades sindicais [de trabalhadores]. E trabalhava muito ativamente, tive que subir em caminhão com megafone e tentar defender o que eu acreditava. Depois, evoluí um pouquinho, fui adiante e conheci o lado de lá. E hoje me sinto muito à vontade, tendo sido professor, presidente da OAB [em Angra dos Reis], tendo escrito dois livros, ou seja, tendo sido advogado de entidades sindicais e, depois, de patrões, sinto-me muito à vontade, hoje, em audiências. Tenho muito pouca dificuldade na relação com advogados, com partes. Tento fazer a minha parte, tento ser um juiz diferente daquela maioria que conheci. Não quero a imagem de alguém com uma espada, de cima para baixo. A finalidade não é essa. Hoje em dia, ganho um terço do que ganhava como advogado e trabalho o dobro, com 55 anos de idade e 32 anos de formado. A despeito do que se imagina, ganha-se hoje [como juiz] muito menos do que estará ganhando daqui a pouco o meu filho, formado há cinco anos. Você tem que ter algo mais dentro de si para justificar essa dedicação.
AVS – Esse algo mais seria o quê, o interesse pelo aspecto social do Direito do Trabalho?
Derly Mauro – Isto também, mas tenho que confessar que nada é de graça. Faço algo assim, também com interesse pessoal. Cansei de ver advogados que não têm preparo algum. Em um dia de audiência, com 15, 20 processos na pauta, mando emendar as petições iniciais de cinco a dez processos, quase a metade. O nível profissional, lamentavelmente, não é dos melhores. Então, o que acontece? Quero, de alguma forma, mudar isto. Como fazer? Só mandar consertar não resolve. Então, resolvi sair, conhecer mais de perto as pessoas, dar aulas. Faço cursos, visito empresas, não fico adstrito aqui [às audiências].
Tenho uma história anterior a esta. Era advogado que estudava, me dedicava, escrevia matérias, cheguei a fazer Sorbonne [Universidade de Paris], um curso rápido de 15 dias de Direito Comparado. Levava muito a sério o que fazia. Exatamente porque já estava com uma dedicação muito grande. Um dia, em um congresso em Belo Horizonte, encontrei com dois amigos que estavam lá para fazer um concurso para juiz do Trabalho. Fui, então, mordido. Eles diziam: “por que você não tenta?”. Tentei então o concurso seguinte e não passei na primeira prova. Tomei um baque e pensava: “como não passei se sustento minha família com isto, dou aulas disto?”. Estava quase escrevendo um livro, mas não passei. Fiz outro e não passei de novo. Fiz dez concursos e não passei em nenhum, tudo com assunto do meu dia a dia. Fui perceber, então, que concurso não mede capacidade de ninguém e não era compatível com minha experiência. Acho que, depois de tanto tentar e gastar dinheiro com isso, Deus deve ter dito: “É isso que você quer, não é, meu filho? Então, vai ver o que é bom para tosse!”. E passei em [concurso] em Curitiba, no Paraná. Até bem classificado e fiquei por lá dois anos.
AVS – E, depois de tantas experiências, foi tentar ser um juiz diferente?
Derly Mauro – Nem me identificava com ideia de juiz que existe por aí. O que é um juiz? Alguém que se coloca acima do bem e do mal, com poderes demais, na primeira discussão se sente desacatado e dá uma voz de prisão? Cansei de ver juízes falarem com testemunhas com muita grosseria. Cansei de ver a dificuldade das pessoas para vir ao Judiciário. O juiz quem é, é alguém que sabe tudo? A Constituição diz que precisa ser alguém com “notável saber jurídico”. E alguns acreditam ter [esse saber], falam de cima, tratam mal o advogado, às vezes nem recebem. Isso tudo eu combatia como presidente da OAB. Lembro-me de casos em Angra dos Reis em que audiências marcadas para 13h, o juiz chegava à 13h30 e saía para almoçar. E a audiência começava quase 15h. É um desrespeito total.
AVS – Com base nessa sua experiência variada, sua reflexão, não é necessariamente sobre processos trabalhistas, mas sobre a relação de trabalho ...
Derly Mauro – Minha convicção é de que não é a sentença, não é o processo, não é virar uma folha que permite distribuir justiça. Acho que distribuir justiça é conhecer, primeiro, seu jurisdicionado, saber quem está na sua frente, não apenas aquilo que se lê. É preciso ter um pouco mais de proximidade. Mas, qual o curso que o Tribunal dá para os seus juízes? Como se fazem acordos? Onde se aprende a persuadir ou convencer? Em lugar nenhum. Você passa no concurso, muito difícil, e no final, simplesmente, apertam sua mão e dizem: “doutor, parabéns, amanhã, às 9h, tem 30 processos na sua mesa”. E o que se leva para essa cadeira é a experiência pessoal. Se o cara for ligado à CUT (Central única dos Trabalhadores), não vai saber o que é uma porta aberta. Se for do lado do empregador, não compreende o empregado de jeito nenhum.
AVS – E o gerenciamento desse conflito, presente na vida social, é problemático.
Derly Mauro – Temos uma relação tão desigual entre capital e trabalho... de um lado, a necessidade grande de sair da informalidade, que cada vez está maior ... por outro lado, quem tem uma porta aberta paga 96,65% de encargos sociais. Se o empregado ganha mil, gera para quem paga quase o dobro. É difícil compreender um negócio desses. Então, quem pagar tudo o que efetivamente é exigido, dificilmente vai manter sua porta aberta. E o que acontece é aquele negócio: “pago por fora”. Isso implica milhões de processos. São questões sociais, questões do [Poder] Legislativo. Não é o [Poder] Judiciário quem diz o valor do salário mínimo, insatisfatório, mas é nele que se descarregam os problemas.
AVS – O ex-presidente Washington Luís (1926-1930), o último da chamada República do Café, considerava a questão social como um caso de polícia. Ele se referia especialmente às questões apresentadas pelo movimento sindical, que crescia nos anos 1920. Como o senhor vê essa questão hoje?
Derly Mauro – A primeira constituição que trouxe a questão do trabalho foi a da República de Weimar [na Alemanha, entre 1919 e1933]. Depois, apareceu também em uma Constituição do México. Os direitos que estão hoje em nossa Constituição são fruto, de muito suor e sangue, muito “caso de polícia”, para se conquistar alguma coisa. Por exemplo, trabalhar oito horas por dia surgiu em 1932, só para os comerciários. Mas pegou de tal forma – outros países já tinham isto – que em 1934 entrou na Constituição.
AVS – E no, entanto, ainda existe trabalho escravo.
Derly Mauro – Quando se fala em trabalho escravo, pensa-se no interior do Piauí. Mas temos notícia de trabalho escravo aqui, em Bom Jardim, onde em uma fazenda de café foram descobertas 17 pessoas em condições análogas [à da escravidão]. Um copo para 17 pessoas, falta de banheiro, comida estragada. E mais: dessas 17 pessoas, oito eram mulheres. Eu moro em Teresópolis e lá, em um [estabelecimento comercial de] 1,99 da vida foram encontradas 11 pessoas dormindo e trabalhando no mesmo ambiente, com um banheiro só. Somente agora, nesta semana [na terça-feira, 22 de maio] foi votada a PEC 438 [Proposta de Emenda Constitucional que determina o confisco de propriedades em que houver trabalho escravo e seu encaminhamento para reforma agrária ou uso social]. A proposta é de 2001.
AVS – E a respeito da superação de tensões no dia a dia da Justiça do Trabalho?
Derly Mauro – Uma vez me perguntaram o que eu faria para melhorar o acordo [nos processos trabalhistas]. Disse que, em primeiro lugar, devia-se retirar a mesa que, por ser retangular, já traz a ideia de antagonismo, de autor e réu. Devia-se ter uma mesa redonda em que todos se inteirassem da intenção de realmente conciliar. Muitos querem apenas uma sentença, uma reparação, que alguém diga: “você está com a razão”. E declarar direito não significa necessariamente distribuir justiça. Aí a estrutura de vida [pessoal] é que vai dirimir [a questão apresentada].
Um problema é que recebemos, só na 2ª Vara do Trabalho [de Nova Friburgo], 20 a 25 petições novas por dia. O que tinha que acontecer é a sistemática de se ter outros meios de solução. Aqui no Brasil, não há a cultura das próprias partes interessadas decidirem. Em outros lugares, as partes resolvem por acordo no escritório do advogado, no escritório do promotor, na seguradora. Aqui parece que se busca sempre a decisão judicial.
AVS – Agora, a respeito dos pedidos de indenização por dano moral, qual sua opinião?
Derly Mauro – Eu sou do tempo em que o dano moral não existia no Brasil. Começou na França e veio se introduzindo pelo mundo. Chegou aqui há umas três décadas, talvez, e entrou para o nosso ramo do Direito com muita força. O dano moral existe, a própria Constituição garante direitos indisponíveis, como honra, liberdade, imagem. O conceito de dano moral se ampliou para o ambiente de trabalho. O dano moral está presente, mas não nessa volúpia que as pessoas falam. Existe, sim, mas é preciso provar. E entre cem petições, 95 são improcedentes [os pedidos de dano moral]. Pede-se sem fundamentação, sem provas.
AVS – Há algo importante que o senhor ainda gostaria de dizer?
Derly Mauro – Quero dar à sociedade outra noção da Justiça do Trabalho, diferente daquela de lugar hostil, do juiz que está acima. Por isso, é importante buscar melhores acomodações, coisa que possam minimizar essa visão de local pouco atrativo. Uma coisa que gosto de dizer, sempre que posso, é que a sociedade tivesse uma visão diferenciada da Justiça do Trabalho, que pudesse, de verdade, superar a visão errada que outros juízes lhe passaram. E que, mesmo aqueles que devem, que não pagaram o direito de outros, ainda assim, têm direito a ser tratados com respeito.
Deixe o seu comentário