Caso de polícia, caso de amor, questão social

quinta-feira, 17 de maio de 2012
por Maurício Siaines
Caso de polícia, caso de amor, questão social
Caso de polícia, caso de amor, questão social

Grace Arruda Driendl é uma policial com 30 anos de carreira. Nascida em Campos (RJ), vive em Nova Friburgo há muitos anos. Desejava originalmente estudar arquitetura, começou a cursar Ciências Sociais, na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, e algumas circunstâncias levaram-na a formar-se em Direito na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Ainda jovem estudante universitária, fez vários concursos públicos e o primeiro em que foi aprovada foi para ser escrivã de polícia, iniciando aí sua carreira. Depois de formada, outro concurso a levou à condição de delegada e foi titular de diversas delegacias de polícia na região em torno de Nova Friburgo.

Ela recebeu A VOZ DA SERRA em seu gabinete na Deam, no terceiro andar do novo prédio da 151ª DP, na última sexta-feira, 12 de maio. Fez uma série de reflexões sobre questões sociais e psicológicas, sempre com base na experiência adquirida na lida com questões propostas pelo dia a dia da delegacia. Abaixo, alguns trechos dessa entrevista.

A VOZ DA SERRA – Qual tem sido a experiência da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), em Nova Friburgo?

Delegada Grace Arruda – A Deam, recentemente inaugurada, em 13 de setembro de 2011, nas primeiras semanas estava muito calma, depois, à medida que a notícia foi correndo de que havia aqui atendimento 24 horas, a delegacia passou a ser frequentada initerruptamente, durante o dia, de madrugada, de domingo a domingo. Temos aqui bons policiais, educados, que atendem as pessoas dentro da lei. Temos um volume muito grande de ocorrências, mas posso afirmar que metade delas não é de violência doméstica e familiar do homem contra a mulher. A Lei 9099, dos juizados especiais, que popularmente são chamados de juizados de pequenas causas, tanto cíveis quanto criminais, abriu a porta da delegacia para [questões de] direito de vizinhança, para brigas entre pessoas. Aqui só atendemos mulheres mas esses 50% [das ocorrências], que não são por violência contra a mulher, são relacionados ao trato, ao bom relacionamento entre vizinhos, a mulheres se engalfinharem umas com as outras por causa de ciúmes de ex-maridos, ex-companheiros, ex-namorados, brigas de jovens em colégios. Como são mulheres, não são atendidas lá embaixo [na 151ª DP], são atendidas aqui [na Deam]. Mas não se trata, necessariamente de violência de gênero, de homens contra mulheres. Temos aqui o caso da vizinha cujo gato está mirando o passarinho da outra: aí ela vem aqui e não posso deixar de atendê-la. E isso consome um tempo enorme. Então, deixo de trabalhar um casal, que pode ser recuperado, para tratar da questão do gato e do passarinho. Deixo de atender com mais presteza uma menina que foi violentada pelo padrasto porque outra se engalfinhou dentro do ônibus da Faol [Friburgo Auto Ônibus Ltda] com uma desafeta por causa de um homem. E por aí, vai. São ameaças por telefone ... coisas de pequeno potencial ofensivo, que tomam metade do tempo meu e de meus gentis e educado funcionários.

Mas, falando da Deam, ela é um reflexo, uma pequena amostra de como se comporta a sociedade hoje na questão de violência de gênero.

AVS – E como é esse comportamento aferido pela Deam? Laura Mury, em entrevista do ano de 2010, trouxe um número um tanto assustador. Ela disse que em Nova Friburgo haviam sido assassinadas 7 mulheres em 2009, praticamente o dobro da média anual nacional que é de 3,6 mulheres assassinadas por ano. Esse número dá alguma espécie de distinção a esta cidade?

Grace Arruda – Trata-se de uma cidade que tem muitos bares que vendem bebidas alcoólicas até de madrugada. É uma cidade em que, no inverno, as pessoas são muito alcoolizadas ... 95% das ocorrências aqui [na Deam] de violência de homem contra mulher em uma relação afetiva têm a ver com bebida alcoólica. Acredito que tudo isso influencie nessa questão do número de homicídios. Drogas, também, mas é mais [grave] o alcoolismo do que o uso da cocaína ou do crack. O álcool é liberado, tolerado ...

AVS – E existe o problema do alcoolismo quase que infanto-juvenil ...

Grace Arruda – Os meninos bebem porque veem o pai bebendo, as meninas bebem porque veem a mãe bebendo, os filhos estão muitas vezes largados em casa porque os pais estão alcoolizados nos bares que ficam abertos a noite inteira sem que haja controle sobre isso.

Todo mundo tem liberdade, sim. Mas esta tem que ser usada com responsabilidade, não é?

AVS – E a violência contra a mulher tem a ver com esse ambiente?

Grace Arruda – O homem chega em casa cheirando mal, a bebida, quer fazer sexo com a mulher mas ela tem nojo dele. Muitas chegam aqui dizendo isto: “Tenho nojo dele, do cheiro dele, do bafo”. E normalmente ele é impotente por causa do álcool e as coisas vão mal dentro de casa, seja no contexto familiar, seja no sexual. E ele acusa a mulher de traição e parte para a agressão.

AVS – E essa suposta traição legitimaria ações violentas, não é?

Grace Arruda – É, e eles sempre usam o álcool para justificar sua conduta agressiva, mas não justifica, porque estão conscientes. Ninguém pode se autointoxicar para poder praticar crimes.

Um homem também não tem direito de interferir no modo como a mulher deve se vestir, como a mulher deve se pentear. A mulher é livre para andar como ela quiser, na hora que ele quiser. Tem direito a fazer sexo com quem ela quiser. Nada justifica uma agressão, nada justifica uma relação sexual não consentida.

Esse tipo de comentário sobre o modo como a mulher estaria vestida [que provocaria a ação violenta dos homens], negativo! Ela tem o direito de usar a saia curta que ela quiser, onde ela quiser. Agora, ela precisa também ter cuidados. E nesta parte que eu falo que algumas mulheres são presas fáceis porque não têm malícia. São mulheres carentes e sem maldade. Uma vez veio uma senhora aqui—uma pessoa sozinha, solitária—que foi a um forró e lá conheceu um cidadão, apaixonou-se e, na mesma semana, colocou esse cidadão para morar dentro da casa dela. E aí começaram as agressões. Um dia ele veio aqui e fomos puxar a ficha dele e era um estuprador lá no Rio de Janeiro.

Então, a mulher tem o direito de estar onde quiser? Tem, tem direito de se vestir como quiser, de ter o cabelo como quiser, o decote como ela quiser. Mas precisa estar um pouquinho mais atenta, um pouquinho mais maliciosa. Assim como tomar um pouquinho mais de cuidado, aprender a observar quem a observa, a não dar confiança, a não dar muita conversa fiada. Porque a mulher ainda é vista como um objeto para satisfazer os caprichos do homem. E toda a imprensa, toda a mídia alimenta isto há anos. Outro dia fui a uma palestra no Tribunal de Justiça, na Escola de Magistratura—todas as delegadas de Deam foram—e assisti a uma palestra de uma promotora que mostrou revistas antigas, dos anos 1930, em que havia conselhos do que a mulher precisava fazer para agradar o homem. Segundo essas matérias, quando o homem chegasse em casa do trabalho, a mulher deveria estar cheirosa, perfumada, bem-arrumada, bem-vestida. Se ele estivesse de mau humor seria porque ela talvez não tivesse se comportado bem. E nas propagandas, a mulher como um objeto apetitoso. A mulher sempre foi colocada como um objeto, como algo a ser degustado, a ser apreciado, despido, desnudado. Um objeto a ser comido. E isto vem sendo propagado pela sociedade ...

 

AVS – ... inclusive pelas mulheres.

Grace Arruda – ... inclusive pelas mulheres, e isto faz com que a maioria das mulheres tenha uma percepção de que isso é o natural. E não é. As mulheres são seres inteligentes, independentes, capazes, mas que não sabem o valor que têm porque a autoestima, na maioria, é baixa ou inexistente.

Temos aqui na delegacia, em todos os casos de violência de gênero a percepção de uma autoestima muita baixa das mulheres. Outro dia veio uma mulher aqui, de nível social muito bom, que tinha um casamento estável—era muito bonita. Ela trocou o marido, o casamento estável, uma relação saudável, porque conheceu o furor de uma aventura. E o cara batia nela, batia, batia ... e pedia perdão. E tinha outra namorada, uma terceira. Essa mulher veio aqui encaminhada por uma psicóloga e dizia [chorosa]: “Eu não sei se quero registrar, tenho pena dele”. E eu disse: “Minha filha, olha para você, para sua imagem. Olha que mulher bonita, bem-arrumada que você é. E agora olha para como você está por dentro, destruída por tudo isso. Esse relacionamento está te fazendo bem? Você acha normal o cara bater em você, ter uma segunda mulher, passar com ela na sua frente, e você ainda querer ficar com esse homem?”. A autoestima dessa mulher estava tão lá embaixo! Ela não sabia que não precisava ter um relacionamento conturbado.

Tive aqui uma senhora com 43 anos de casamento que sempre sofreu violência psicológica, violência moral, aquelas agressões: “Você não presta pra nada, você é isso, aquilo”. E ele agarrava as empregadas, dentro de casa. Ele nunca levantou a mão para ela, a agressão nunca foi física. E essa mulher não suportava mais, queria o divórcio. E ele não queria dar o divórcio por causa dos bens, mas quem tinha construído o patrimônio havia sido ela, quem pagava a seguridade social dele era ela. E por fim, estavam na mesma casa, separados de corpos, ela com a autoestima lá embaixo, achando que nada mais resolvia, e ele chegava bêbado. Até que um dia, ele perdeu as estribeiras, porque queria fazer sexo com ela e ela não queria. E ele socava a porta do quarto, dizendo: “Vou te matar, sua desgraçada, vou te jogar pela janela!”. E uma amiga lhe disse que viesse à Deam e registrasse. Ela veio, registrou a ameaça e, depois de uma conversa pedagógica com ela e com ele, ele aceitou pacificamente o divórcio. Foi um caso que teve êxito. Nem todos a gente consegue. E o que havia era agressão moral e psicológica: ele nunca encostou a mão nela, mas durante 43 anos ela viveu com um homem que a agredia verbalmente, que agarrava as empregadas ... e ela não conseguia se libertar daquele círculo de violência doméstica psicológica e moral.

Parece que os homens, nesses relacionamentos, se sentem no direito de fazer a mulher sofrer. E a mulher, infelizmente, encara como sendo natural o sofrimento. São mulheres com grave transtorno afetivo, com propensão ao sofrimento espiritual, mulheres que acham que não são felizes se não tiverem um homem do seu lado, que não são felizes se não tiverem um homem para copular, não tiverem um relacionamento sexual. Não estão acostumadas a relacionamentos saudáveis, entendem como normal e natural aquele ciclo, aquela relação simbiótica, doentia. É como diz a psicóloga Robin Norwood, mulheres que amam demais, mulheres que têm dependência de relacionamentos doentios. Isso, aqui na Deam, é 90% dos casos dos relacionamentos agressivos de homem contra mulher. Mulheres que não sabem de sua força, de seu valor, que refletem na vida adulta situações da infância, situações de abandono emocional, de abuso sexual. Nem sempre o abuso sexual; o abandono emocional, às vezes, é muito pior. Essas mulheres buscam homens problemáticos procurando consertar aqueles homens. Acham que o seu amor vai recuperar aqueles homens. E, mal sabem elas: cada vez mais aquilo se torna um ciclo vicioso. Acabei de ler esse livro [“Mulheres que amam demais”, de Robin Norwood] para entender um inquérito que tenho aqui.

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