Júlio Cezar Seabra Cavalcanti, o Jaburu, é não só conhecido em Nova Friburgo, como se tornou uma referência para atividades artísticas e culturais na cidade. Fundador do Gama (Grupo de Arte, Movimento e Ação), nasceu em Viçosa (MG) e mudou-se para Nova Friburgo quando seu pai, funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina, foi transferido para a cidade. Além do envolvimento com as artes, Jaburu foi goleiro do Friburgo Futebol Clube, bicampeão municipal, e campeão do estado pela seleção de Nova Friburgo. Também jogou basquete na Sociedade Esportiva Friburguense. Apaixonado pela cidade, Jaburu tem se envolvido desde 2005 com a criação de monumentos que marquem a memória friburguense, juntamente com o artista Felga de Moraes e o dramaturgo Chico Figueiredo, atual presidente do Gama.
O último monumento já pronto é o Memorial 12 de Janeiro, em referência à tragédia das chuvas de 2011, no Suspiro. Nele encontra-se a seguinte expressão de Jaburu: “Reconhecimento à bravura, à dignidade e ao estoicismo do povo friburguense”. Essa ideia de estoicismo—que pode ser entendido também como resignação diante do sofrimento, da adversidade, do infortúnio—é muito cara a Jaburu, entendida essa atitude como resignação ao fato passado, mas como motivadora de ação em nova realidade. Ele entende que além das chuvas, aconteceu uma “tragédia administrativa maior que a tragédia climática com descaso e desrespeito”. Acredita, porém, que pode ter surgido ali a semente de algo novo, tal como a guerra, “a pior coisa que existe”, pode ensejar “grande desenvolvimento cultural, científico, social e artístico”. Em uma frase resume todo esse modo de pensar: “O universo não se move a pedidos, ele está aí e acontece”. Jaburu conversou com A VOZ DA SERRA, no fim da tarde de segunda-feira 30 de abril, abordando as realizações do Gama e os projetos recentes relacionados à criação de monumentos. Abaixo, trechos dessa conversa.
A VOZ DA SERRA – Fale um pouco sobre o memorial da tragédia de 12 de janeiro de 2011, que está no Suspiro.
Jaburu – Aquilo ali não é um momento de lamento, é um grito de alerta contra o descaso para com Nova Friburgo. Nós precisamos reagir, sempre nos reunir ali e falar, como de uma tribuna livre para se dizer o que se pensa. Não vamos fazer isto agora porque estamos em um momento conturbado, pré-eleição. Pretendemos, daqui a algum tempo, obter autorização da Prefeitura ou da Câmara Municipal para termos ali uma tribuna livre, como existe no Hyde Park, em Londres. E isto não é para ofender, mas para discutir ideias. Há a ideia de se organizar ali, uma vez por mês, bate-papos sobre Friburgo, tratando de nossa história, nossas pessoas. Assim fica uma coisa mais dinâmica, mais viva. Acho que nós, em Friburgo, agimos pouco e reagimos muito menos ainda. É preciso haver mais ação da população em relação às nossas coisas, pois nós somos os cidadãos.
AVS – Como foi a criação desse memorial?
Jaburu –Veio na minha cabeça o Memorial dos Bandeirantes, de São Paulo, aquela coisa enorme, linda. Ele é todo no chão e os personagens vão subindo. E eu estava brincando com um troféu recebido do Grêmio Português e aí fiz assim [inclina o papel que tem nas mãos, afastando-o da posição paralela ao chão]. E foi assim, é exatamente o que está lá. E nessa posição mostra insegurança, instabilidade. E aí, conversei com o Chiquinho [Chico Figueiredo], depois com o Felga [de Moraes], fomos lá para o Superpão, aí o Felga completou, fomos trocando ideias. E o Felga é simplesmente um artista de mão cheia. Você tem que ficar orgulhoso de viver em uma cidade que tenha um Felga, assim como tem outros grandes valores. Felga é uma coisa excepcional. O homem Felga é uma coisa, o artista é outra e esta é a característica, a meu ver, dos grandes artistas, essa dicotomia entre o comportamento do homem e do artista. Quanto mais o artista é evoluído, mais gauche é o ser humano que tem dentro de si o artista. Eu acho Felga completo.
E [o memorial] tem tido uma grande aceitação. Quantas vezes eu já vi pessoas chegarem ali e colocarem uma rosa! Esse monumento, além de ser bem mais visível que os outros, está na cara de todo mundo, ele é em cima de um terrível momento de Nova Friburgo, que independeu de todos nós, mas que nos proporciona uma oportunidade fortíssima de mostrarmos quem somos. Friburgo há de reagir e tornar-se melhor do que era. E esse monumento não é uma lástima, não é choramingar, é um processo de constatação de que nós, politicamente, sabemos reivindicar nossos direitos de cidadãos. Uma das maiores características de Friburgo é não ser uma cidade monolítica, não é um totem de cimento. Friburgo tem, talvez, na história do Brasil uma coisa ímpar que é sua colonização, que trouxe para nós vários fatores de influências. É uma cidade muito difícil de ser compreendida, tem influência dos libaneses, dos espanhóis, dos franceses, dos suíços, dos alemães, dos índios: é uma complexidade. Por isto é difícil administrar Friburgo, porque uma pessoa só jamais vai compreender os sonhos e os anseios da população de Nova Friburgo. Além dessas montanhas que nos rodeiam, a energia que corre aqui é muito forte. Disse um trovador que essa energia é simplesmente a poética aristotélica.
AVS – E essa ideia de fazer monumentos?
Jaburu – Ela nasceu em Petrópolis. Fui acompanhar dois espetáculos de teatro lá. Sou um vagabundo chapliniano e adoro Petrópolis. Aí, fomos por Teresópolis, Itaipava. Vi o primeiro espetáculo e o segundo era igual, aí fiquei zanzando, vagabundeando em Petrópolis, no meio daqueles monumentos, com o Museu, a Casa de Santos Dumont. E uma hora me veio o insight: vamos fazer uma coisa dessas em Friburgo. Isso foi final de 2005, início de 2006. E em outubro de 2006 inauguramos o primeiro monumento, a Galdino do Valle Filho. A ideia bateu e pensei no Felga. Eu, Chico e Felga transamos essa ideia de monumentos. O Felga mora perto do [local onde está o monumento a] Galdino e nos levou lá e mostrou a vista e disse que o espaço era da Prefeitura.
Pretendemos fazer no Parque Santa Elisa, em torno dos monumentos a Galdino do Valle, a Guignard e a Dom João VI um espaço, com 17 mil metros quadrados, com lugar para andar, com bancos, dois quiosques com as coisas de Friburgo, com livros, fotografias.
AVS – Mas não é um lugar meio isolado?
Jaburu –Não é um lugar isolado, pois só acha quem procura e só procura quem sabe. Há uma inércia impregnada no nosso comportamento e só se faz a mesma coisa a vida inteira. As pessoas falam: “Você vê, eu nunca mudei!” Essa dinâmica de mudar é muito pouco característica, não só de Friburgo, mas da serra, pela falta, talvez, de horizontes. No ano seguinte, fizemos o monumento a Guignard, também a partir do troféu feito pelo Felga. Aí, eu não sei por que, pensei: “Está na hora de Dom João VI, que é a célula-mater de Friburgo”.
AVS – Monumentos sempre refletem a vontade de quem os constrói, que pode não estar de acordo com a realidade. Não poderá estar havendo algum erro na avaliação dessas realidades que ensejam a construção dos monumentos?
Jaburu –Pode até ser que haja erro, mas ele estaria baseado no pensamento de que é preciso tentar ser feliz onde se vive. O pássaro azul, do [dramaturgo belga Maurice] Maeterlinck, que representa a felicidade, não está lá, mas aqui, no nosso terreno, na nossa casa, na nossa cidade. Mas para se compreender isto são necessárias duas coisas fundamentais: conhecer nossa história e preservar nossa memória. Um grupo de pessoas que não tenha sua história conhecida e que não preserve sua memória no inconsciente coletivo é um conjunto de ninguém, seja aqui como em Campinas ou Nova Iorque. Sem a história, você é um títere, o grupo é um conjunto de ninguém, como aquela boiada que vai embora. Esta é a ideia do Gama: um trabalho de conhecimento e preservação da nossa história. Temos o Dom João VI, o Galdino, o Guignard e, agora, o Memorial 12 de Janeiro. Virão, agora, mais três monumentos, em Olaria, em homenagem a essa coisa fantástica, profundamente cultural, que é o esporte.
AVS – Como serão esses monumentos.
Jaburu – Vão ser ali na Via Expressa. São três monumentos. O primeiro é específico a essa grande magia que é o futebol, uma criação belíssima do Felga. Vai ser perto do campo do Friburguense, em um espaço muito bom que tem ali. Mais ou menos no meio da Via Expressa haverá outro, homenageando uma série de esportes, basquete, vôlei, natação. E, no final, fazemos uma homenagem ao que se costuma chamar de esperança no porvir, mas que chamamos de realidade, que é a criança.
Será também uma referência ao primeiro pensador da Via Expressa, [o ex-prefeito] Alencar Pires Barroso. Em seguida veio o governo do Heródoto, que não tomou conhecimento, depois o Paulo Azevedo, que conseguiu fazer a Via Expressa. Como seria possível o Cônego e todos aqueles outros bairros sem a Via Expressa? Ela deu qualidade ao ir e vir do friburguense. O início de conversa para se fazer alguma coisa ali partiu do [empresário] Eduardo Vogt. E como nós gostamos de enfrentar esses desafios daqui a um tempo [os monumentos] já estarão prontos. O Felga já fez os planos.
AVS – Em quanto tempo vocês acham que esses novos movimentos estarão prontos?
Jaburu – Acho que até setembro estarão prontos e certamente os três serão inaugurados no mesmo dia. E vamos tentar fazer nesse dia um momento muito bonito ligado a Olaria e ao esporte, um dia inteiro de comemorações e disputas, vamos dar troféus aos vencedores.
AVS – Se fôssemos concluir essa conversa que parece não ter fim, o que você diria sobre Nova Friburgo neste contexto de superação dos efeitos das tragédias vividas?
Jaburu – O destino de Friburgo não é o choramingar, é o cantar. É uma cidade dionisíaca, quer queiram, quer não queiram.
AVS – Mas é uma cidade de tradição industrial, uma cidade de trabalhadores.
Jaburu – Mas com Dionísio no meio.
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