Analfabetismo

quarta-feira, 07 de março de 2012
por Jornal A Voz da Serra
Analfabetismo
Analfabetismo

Humilhante, degradante, triste e, infelizmente, real

Texto: Dalva Ventura

Fotos: Lúcio Cesar

Discretamente, a caixa do banco procura uma almofada de carimbo para uma senhora registrar sua impressão digital e poder fazer alguma movimentação bancária. Impossível a cena passar despercebida. A senhora em questão, de cerca de 40 anos, integra a imensa legião de brasileiros que não sabe sequer assinar seu nome. Totalmente analfabeta.

Bem verdade que os chamados “analfabetos funcionais”, isto é, aqueles que até sabem assinar ou identificar palavras simples, como placas de ônibus ou fazer cálculos básicos, formam a maior fatia de bolo. Mas a verdade é que em pleno século XXI, o país ainda tem 14 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não sabem ler nem escrever (dados do Censo 2010)—nada menos que 9,1% da população. A taxa de analfabetismo entre a população vem caindo, mas ainda é maior que no Zimbábue e outros países africanos, e maior que no Chile, Bolívia, Peru e Argentina, por exemplo. Uma vergonha nacional que já deveria ter sido erradicada há muito tempo.

A realidade de Nova Friburgo é mais ou menos a mesma. A coordenadora do EJA (Ensino de Jovens e Adultos), Ana Paula Cortes, lamenta a inexistência de dados concretos que permitam dimensionar o exato número de analfabetos no município. Mas, logo de cara, garante que é enorme. E garante que não tem gente analfabeta só na roça, como muita gente pensa.

“Visitei muitas empresas e fiquei assustada com a quantidade de analfabetos de nível rudimentar trabalhando. Posso afirmar com todas as letras: não é na roça que se concentra o analfabetismo. Está em toda parte e, extraoficialmente, pois não tenho dados oficiais para afirmar isso, digo que aqui em Nova Friburgo o problema está presente em todas as empresas.”

Ela se refere a pessoas que conseguem ler textos curtos, como placas, operar máquinas e até fazer cálculos simples, mas não conseguem ir muito além. Que têm uma compreensão muito limitada do que observam ou produzem, o que emperra—e como emperra—seu desenvolvimento pessoal e profissional. Afinal, dominar a leitura e a escrita é uma questão de cidadania, de autoestima e, por isso mesmo, Ana Paula e seu exército de alfabetizadoras lutam tanto para diminuir essa taxa.

Claro que na zona rural tudo é mais difícil e ali estão concentrados os maiores focos de analfabetismo. As distâncias são enormes, as escolas, isoladas, os caminhos, acidentados, o que dificulta e por vezes impede o acesso de alunos e professores. Além disso, antigamente a educação não era tão valorizada. Os pais preferiam deixar os filhos trabalhando na roça do que mandá-los à escola. Optamos por uma escola rural para ver como funciona uma unidade do EJA ali.

Um desafio que exige muita dedicação

Chegamos à Escola Municipal Cypriano Mendes da Veiga, em Barracão dos Mendes, numa noite de lua crescente e muitas estrelas no céu. A região, situada a 30 quilômetros do centro de Nova Friburgo, é uma grande produtora de hortaliças, com uma população composta, basicamente, por lavradores. E que concentra um grande número de pessoas que não aprenderam a ler e escrever. Ou que dominam apenas em parte a leitura e a escrita.

São 75 alunos—18 nas séries iniciais—quase todos com a expressão cansada, depois de enfrentar um dia inteiro de trabalho, mas dispostos a trocar a novela, o futebol ou um merecido descanso para encarar uma maratona de aulas. A maioria mora a quilômetros de distância e motos e bicicletas—atualmente, os principais meios de locomoção da zona rural—estão estacionadas na frente da escola.

O resultado compensa. Não se tem nada sem sacrifício, como ouvimos de alguns deles. E, ao que parece, são felizes por estarem ali. Os professores são esforçados. Aliás, esforçado é pouco. Para trabalhar à noite naquela lonjura, ganhando salário de professor, tem que ser muito abnegado. E, trabalhar com adultos, só entrando de cabeça.

O professor de adultos—e, sobretudo, de adultos analfabetos—precisa valorizar a experiência deles, que é o que têm de mais valioso. Compete a esses mestres acabar de vez com aquela ideia de que são burros e nunca vão conseguir aprender. Um sentimento que, infelizmente, muitos carregam desde a infância.

Pudemos observar in loco o entusiasmo e a energia de Ana Paula Cortes. Ela está à frente do programa há dois anos e se dedica de corpo e alma a “suas crianças”. Num curto espaço de tempo, conseguiu multiplicar a quantidade de unidades que oferecem ensino de adultos e também o número de alunos matriculados. Atualmente, 360 pessoas com mais de 15 anos estão matriculados nas 16 escolas municipais atendidas pelo EJA, sendo que 75 nas séries iniciais.

Ainda é pouco, muito pouco. Menos de 4% do total de alunos da rede municipal de ensino, que tem quase 20 mil alunos. Ana Paula não abre mão de nenhum e acompanha de perto, com olhar atento, os relatórios e planilhas. Fiscaliza tudo, visita as unidades sem avisar, verifica o estado dos banheiros, olha os cadernos, exige que as luzes da escola permaneçam todas acesas. E, detalhe importante, faz questão que a merenda seja adequada a adultos.

Professora desde 1991, foi ela quem desenvolveu o método de alfabetização de adultos aplicado no município e que parte da realidade de cada um e de suas vivências. Não é fácil. Entre outras coisas, a musculatura fina das mãos fica mais enrijecida, o que dificulta o desenho das letras, necessitando ser bem trabalhada para se soltar. A coordenação motora também não é a mesma de uma criança. Então, o processo de alfabetização de um adulto normalmente leva dois anos ou até mais para se completar.

Tirando o atraso

Fazer comida é com ela mesmo. Mas na hora de ler e escrever, aí o bicho pega. Com 48 anos, passou a vida à margem das letras, o que, admite, só ela sabe a falta que isso lhe fez a vida toda. Morava longe, faltava condução, tinha de trabalhar para ajudar os pais e vai por aí. Claudete Cabral Carneiro pilota sozinha o fogão do Ceasa, em Conquista, dá conta de servir almoço para sei lá quantos trabalhadores. Vida dura. Nem ela nem seus oito irmãos frequentaram escola. Todos trabalhavam na roça. Mais tarde, nunca sobrou tempo nem disposição para mudar este quadro.

Garante que nunca ligou para estudar, mas na verdade, seu sentimento devia ser algo comum a todos que chegam à idade adulta sem ler e escrever. Vergonha de dizer que era analfabeta e de encarar o processo de alfabetização. Ainda hoje, em alguns momentos pensa que não vai conseguir. Dá para perceber que Claudete é uma mulher calejada e sofrida. Faltam-lhe alguns dentes, suas mãos são grossas, o rosto precocemente envelhecido. Como os demais, ela tem dificuldade para se expressar.

Mas seus olhos brilham quando fala das aulas e garante que já aprendeu muito desde o ano passado, quando se matriculou. Moradora da comunidade, incentivou muita gente a estudar e exigiu que os filhos, hoje com 14 e 20 anos, apresentassem bons resultados na escola.

“Não quero que eles cresçam como eu, com vergonha de mim mesma por não saber uma coisa que todo mundo sabe.”

Pergunto a Regina da Silva se isso também acontece com ela e a resposta, claro, é positiva. Mas por que ela e Claudete estudaram tão pouco quando crianças, ao ponto de sequer terem se alfabetizado? A resposta também é quase a mesma. Se entrevistássemos cada um dos alunos sentados ali, provavelmente não haveria surpresas. Todos diriam: a escola ficava longe, faltava condução, precisavam ajudar a família na lavoura. E, principalmente, os pais não faziam a menor questão de que estudassem.

Como os demais, quando se matriculou, Regina só sabia assinar o nome e olhe lá. Agora, diz, já consegue ler alguma coisa e até a escrever uma ou outra palavra. Casada, tem três filhos—de 15, 14 e 12 anos—e se preocupa muito com seu futuro. Nenhum deles é muito de estudar, mas, se depender dela, não vão parar tão cedo. Regina afirma saber perfeitamente que quanto mais tarde, mais difícil é o aprendizado. Lembra que a vida em si já se torna bem mais complicada quando a gente cresce. A dela, por exemplo, não é nada fácil. Já ralou muito, embora hoje esteja em casa e não trabalhe fora, pois além dos filhos, também tem de cuidar da mãe, que teve um AVC e precisa dela para tudo.

“Essas coisas a gente tem que aprender quando é criança. A gente vem para o colégio, mas tem tanta preocupação, é tão cansativo! Nossa sorte é que os professores são muito carinhosos e têm paciência. Tem vezes que eu acho que não vou conseguir, mas aqui eles não deixam a gente desistir.”

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