Maurício Siaines
Ipojucan Kher é figura bastante conhecida em Lumiar, onde nasceu em 1953 e de onde poucas vezes saiu. O nome é uma homenagem a um antigo meia-direita do Vasco, campeão carioca de 1952. Juca, como ficou conhecido, diz que o pai era “vascaíno roxo”. O mais moço de dez irmãos, todos já falecidos, ele também torce para o “Gigante da Colina”, embora seja mais moderado. Só neste fato tem-se ideia da importância do futebol para a formação de identidades locais, mesmo em um lugar totalmente afastado, como era Lumiar no início dos anos 50, onde o pai de Juca foi uma das primeiras pessoas a possuir um aparelho de rádio, motivado em primeiro lugar pela vontade de acompanhar jogos e notícias de seu clube.
Há 25 anos, Juca trabalha no cemitério local, mantido pela Sociedade Beneficente e Zeladora do Cemitério da Pedra Riscada, onde foram sepultados os imigrantes suíços Jean Claude Marchon (1794-1857) e Marie Neuve Balmat Marchon. Lá ele deu entrevista a A VOZ A SERRA, na terça-feira, 1º de novembro, enquanto dava os últimos retoques no lugar para receber os visitantes que viriam no dia seguinte para as cerimônias de Finados, contando algumas histórias da localidade. O sossego é um marca do lugar, cercado por eucaliptos e com os mais diversos cantos de pássaros—de arapongas, inclusive—, com o ruído do Rio Macaé ao fundo.
A VOZ DA SERRA – O cemitério é um lugar associado às histórias de vida das pessoas. Além, é claro, de ser o local dos mortos. Como é para você trabalhar aqui, no meio de tantas referências ao passado?
Ipojucan Kher – Gosto do que faço aqui, faço o serviço com carinho, não trabalho reclamando, nada disso. Não é por sepultar as pessoas, que é uma coisa triste. Às vezes, estou deprimido, venho para cá e me sinto bem. Aqui é um lugar que me passa tranquilidade. Por isso cuido de tudo aqui com carinho.
AVS – Essa tranquilidade tem a ver com a lida com as histórias das vidas das pessoas?
Juca – Para dizer a verdade, não sei nem explicar o porquê. Mas depois que me acostumei a trabalhar aqui, passei a me sentir bem de saúde e eu era muito doente. Eu me sinto em paz aqui.
AVS – E essa vivência já tem 25 anos.
Juca – Mais ou menos.
AVS – Mas você é fácil de encontrar ali na praça, não é?
Juca – É, quando tenho folga aqui.
AVS – Mas dali você assistiu a todas as mudanças pelas quais a localidade tem passado, não é?
Juca – É, nos últimos 40 anos. Nascido e criado aqui, assisti a todas as mudanças.
AVS – O que você achou mais significativo nessas mudanças?
Juca – As mudanças melhoram de um jeito e pioram de outro.
AVS – O que melhorou?
Juca – As condições de vida melhoraram. Por outro lado, algumas coisas pioram o lugar. Agora tem telefone, luz elétrica, mais ônibus, mais conforto para se ter acesso a Friburgo ou ao Rio de Janeiro. O que piorou está em ter muita gente de fora e sempre acontecem coisas ... A população vai aumentando e os problemas vão aumentando também. Não é nada extraordinário, é consequência da vida. Antigamente, você podia sair de casa e deixá-la aberta, hoje, não pode mais, tem que trancar os portões ... antigamente não era preciso fazer isto.
AVS – Quando você fala “antigamente”, você está pensando em quanto tempo?
Juca – Uns 20 anos. Naquele tempo, todo mundo se conhecia. Hoje em Lumiar, em um final de semana, você passa na rua e vê dez desconhecidos e um conhecido. Mas isso é o progresso e a gente tem que aceitar, tem que conviver com tudo isso. Claro que eu preferia quando tudo era mais pacato, mas não tem outro jeito, não é?
AVS – Mas aqui você fica sossegado, não é? Você cuida de tudo ...
Juca – É, mas vou ter que me aposentar agora, chegou a hora ...
AVS – Você está triste por ter que se aposentar?
Juca – É, para dizer a verdade, não gostaria de me aposentar agora, mas infelizmente chegou a hora ... Sou funcionário da Prefeitura e já fiz diversos serviços, trabalhava na estrada, trabalhava aqui ... sou cedido para a sociedade do cemitério que é particular.
AVS – Há muitas histórias aqui que você se lembre, sepultamentos mais movimentados?
Juca – Já houve diversos. Recentemente, do seu Nagib [Pedro], do seu Adeniro [Klein].
AVS – Esse dois sepultamentos foram neste ano, não é? Não existe algo mais antigo que tenha lhe chamado a atenção?
Juca – Acho que o sepultamento que mais me marcou foi o de um colega meu de serviço, que também trabalhava na Prefeitura e era um grande amigo.
AVS – Você conheceu vivas muitas das pessoas que estão enterradas aqui ...
Juca – Muita gente, quase todo mundo.
AVS – Quando você convive aqui com esses túmulos das pessoas você lembra delas?
Juca – Eu penso nas pessoas. Cada um teve uma história e uma amizade. Como não tenho inimigos, todos trazem boas lembranças. A gente não pode chorar por todos mas o sentimento fica no coração. Boa parte de meus amigos, inclusive minha família toda está aqui, só fiquei eu ... dá quase um time de futebol. Isso marca muito a gente: tinha uma família grande e fiquei só eu. Vou passando e aqui tem um, ali tem outro.
AVS – Seus pais estão enterrados aqui?
Juca – Meus pais e meus irmãos.
AVS – E quando você anda pelo cemitério, lembra de coisas que eles falavam?
Juca – Lembro. Aqui, tenho pai, mãe e seis irmãos.
AVS – Você aqui pensa em como tem sido a vida?
Juca – Quando estou aqui, esqueço dos problemas da vida. Aqui me sinto bem. Mesmo quando não tem serviço, venho para cá fazer minhas orações ... é como uma terapia. Muitas pessoas trabalham em serviços que não gostam. Eu gosto de trabalhar aqui, cuido disso aqui com carinho e com respeito. Hoje, por exemplo, não precisaria estar aqui, mas estou, limpando, arrumando.
AVS – Amanhã, Dia de Finados, vai estar muito cheio?
Juca – Ultimamente, o povo tem diminuído. Há uns anos atrás, era uma festa. Agora, não. Com muitos carros, as pessoas vêm e voltam, então não dá mais aquele movimento.
AVS – E como era?
Juca – As pessoas vinham e ficavam o dia inteiro. Havia um botequim ali embaixo, um armazém, e as pessoas ficavam aí. Chegava na parte da tarde, sempre dava umas briguinhas, uns tapas para lá, uns tapas para cá.
AVS – Por que aconteciam essas brigas?
Juca – Umas bebidas a mais, não é? Hoje não tem mais isso, nem comércio tem mais. As pessoas vêm aqui, depois retornam para suas casas e não tem esse tipo de problema.
AVS – Você cresceu aqui em Lumiar e viu tudo mudar. O que marcou? O futebol, a banda, o quê?
Juca – O que eu gostava muito era da banda, a Euterpe Lumiarense. Era chamada de furiosa. Aonde ela ia eu ia junto, gostava mesmo. A banda ia para as festas, tocava nas procissões.
AVS – A banda estava, então, na vida do povo do lugar.
Juca – Na vida do povo. Até hoje eu gosto.
AVS – A banda tocava também em enterros?
Juca – Também, vinha tocando atrás, aquelas marchas fúnebres. Isso era no tempo de minha infância.
AVS – Quando a banda parou de tocar, você tinha que idade?
Juca – Devia ter 20 ou 21 anos.
AVS – Você tocava?
Juca – Cheguei a praticar um pouquinho com o bombardino, mas depois a banda acabou e não pude continuar. Eu também não era muito bom naquilo. Eu tinha um irmão que era muito bom. Tocava vários instrumentos.
AVS – Se a banda não tivesse acabado você talvez tivesse tocado o bombardino, não é?
Juca – Talvez tivesse, mas eu não era muito bom de música. Meu negócio era mais de ouvir.
AVS – E muita gente ia ver a banda tocar.
Juca – Muita, aquilo era uma festa. Era a banda na frente e o pessoal atrás, era muito bonito.
AVS – E o futebol?
Juca – Eu era apaixonado também pelo futebol.
AVS – Chegou a jogar?
Juca – Corri atrás. Meu irmão Samuel, um pouquinho mais velho que eu, era um craque. Era bom de bola e de música. Era o cara que tudo que pegava fazia bem, mas infelizmente foi embora cedo, com 43 anos.
AVS – E além da banda e do futebol?
Juca – Havia as ladainhas que aconteciam na igreja, coisas que foram acabando. Não acabaram mas se modificaram, porque as pessoas frequentavam muito mais do que hoje. Antigamente as coisas eram melhores, havia mais fé, mais responsabilidade. Hoje, a própria vida vai afastando as pessoas de muitas coisas.
AVS – Você chegou a trabalhar na lavoura?
Juca – Trabalhei, desde os 6 anos até os 16 anos e meio. Fui trabalhar no comércio, depois saí por motivo de doença e, mais tarde, entrei na Prefeitura.
AVS – E tem alguma coisa mais que você gostaria de falar de Lumiar?
Juca – O que tenho de falar é que eu amo isso aqui. Pouco saí daqui. O único lugar em que fui três vezes foi a uma cidade do Paraná chamada Cianorte. Do Rio de Janeiro não conheço nada. Já fui lá só de passagem. Eu gosto é daqui, é o porto seguro, Lumiar é tudo.
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