Idas e vindas na vida e nas lembranças

quinta-feira, 22 de setembro de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines

Hilda Berbert, nascida em Lumiar em 1929, teve a experiência de muitas mudanças em sua vida. Neta de Carlos Maria Marchon, fazendeiro rico e poderoso da localidade, seus pais escolheram a busca de melhores condições de vida em outros lugares, opção comum entre as famílias de Lumiar nas primeiras décadas do século 20, quando o cultivo do café foi sendo substituído pelo de outros produtos de muito menor valor no mercado. Tempos depois, nos anos 1950, mesmo estes começaram a ser abandonados dando origem a outro movimento de emigração de lumiarenses. A família de Hilda foi tentar a sorte no interior de São Paulo, outros, mais tarde, foram para o Paraná. E muitos voltaram, tal como aconteceu com Hilda e sua mãe, Alda Marchon. As histórias dessas idas e vindas, a partir de memórias misturadas da mãe e da filha, foram contadas por Hilda a A VOZ DA SERRA. Abaixo, um resumo delas.

A VOZ DA SERRA – Que lembranças a senhora tem de seu avô, Carlos Maria Marchon?

Hilda Berbert – A gente ia para lá, para a casa dele [o casarão da praça, em Lumiar], lá tinha engenho, tinha moinho ... tinha tudo, era uma fazenda. Às vezes queríamos ir ao pomar, tirar uma laranja, por exemplo, e tinha que ser escondido dele, porque ele não deixava, ele era bravo. Mas era uma pessoa boa, amiga. A casa tinha nos fundos uma mesa grande daquelas madeiras antigas, que servia para se cortar as coisas em cima dela. Tinha uma cozinha comprida, uma escada [para o andar de cima], no segundo andar ficavam os quartos, seis quartos.

AVS – Na sua infância, a senhora morou aqui em Lumiar até que idade?

Hilda – 4 anos. Lembro de histórias também de que meu avô não gostava de ver ninguém fumar. Então, quando meu pai [Ataliba Leopoldo Berbert] fumava e encontrava com ele, escondia o cigarro [aceso] no bolso chegando a queimar o paletó. Antigamente não havia polícia. A polícia eram os próprios donos do lugar, cada um tinha uma autoridade e todo mundo respeitava.

AVS – A senhora saiu daqui com 4 anos e voltou ...

Hilda – ... ia fazer 17 anos. Não vim morar aqui, mas em Niterói, onde ficamos 40 anos. Lembro de termos vindo uma vez aqui em Lumiar, quando tinha 18 anos [em 1947] ... ainda não tinha estrada. Meus tios que moravam aqui foram nos buscar a cavalo, em Mury. Lembro que, no meio da estrada me deu sede e desci do cavalo para beber de uma água corrente. Tinha um cordãozinho de ouro que, quando me abaixei para pegar a água, prendeu em uma pedra e ficou lá.

Viemos para Lumiar e, nessa época, ainda tinha a banda [Euterpe Lumiarense], era muito bom! Ficamos na casa de minha tia Carmem, irmã do meu pai, e vínhamos assistir à banda tocar ... passávamos aquela pontezinha e íamos ali na sede [da Euterpe, que não era a mesma de hoje, mas situada em lugar próximo] e a banda era muito bonita ... não tinha estrada, não tinha luz, era tudo escuro. Naquela época, as pessoas usavam roupas diferentes, era tudo social ... Lumiar era um lugar social, não era como hoje.

AVS – O que a senhora está chamando de social?

Hilda – Era um lugar de pessoas educadas, em que não se andava de qualquer maneira, as pessoas andavam bem vestidas. Chamava-se o lugar [o centro de Lumiar] de arraial e era diferente da roça. Não se via sujeira, era coisa muito bonita. Lumiar estragou quando começou a se abrir para a entrada de hippies ... foram eles que começaram a estragar Lumiar. O campo de futebol virou uma favela de hippies.

AVS – Mas a senhora não acha que foram os hippies que trouxeram o turismo para cá?

Hilda – Será que foram eles? Se não tivesse o turismo, Lumiar também não existiria, ia viver de quê? Mas aí, acabou a roça.

AVS – A senhora acha, então que foi o turismo que acabou com a roça?

Hilda – Eu acho que foi, porque todo mundo começou a viver de comércio. O começo foi aí, quando as pessoas começaram a se iludir ... um abria um bar e aí viam que estava dando certo e alguém fazia outro. Veja as pousadas. Só tinha a pousada Klein e o Italiano, não tinha mais nenhuma. Eu mesma muitas vezes fui comer no Klein e era aquela comidinha de roça. E o que aconteceu depois dos hippies? Eles começaram a chamar o turismo mas eu acho que estragou porque veio o turismo bom e o turismo ruim, misturou tudo.

AVS – Voltando àquela viagem de quando a senhora tinha 18 anos, quanto tempo a senhora ficou aqui?

Hilda – Ficamos aqui 15 dias. Era na chegada a Lumiar, não sei exatamente onde ... meus tios todos já morreram. Dos primos, da parte de minha mãe, acho que só eu e mais uma prima ...

AVS – E sua mãe, dona Alda Marchon?

Hilda – Ela era uma pessoa que nasceu ali [no casarão de Lumiar, sede da fazenda], viveu ali até os 20 anos ... meu avô teve escravos ... ela disse que, até os 20 anos nunca tinha feito nem arroz. Ela ia muito a bailes por aí, a cavalo, junto com as irmãs. Ia lá para Sana com as irmãs e voltava de madrugada ... eles passeavam muito.

AVS – E seu avô não se importava que ela passeasse tanto assim?

Hilda – Acho que ele deixava ela ir porque tinha pessoas que tomavam conta. Aí casou com meu pai, pobre, e foi carregar jacá de milho nas costas ... tinha uma vida de rica e passou a levar uma vida de pobre. Foram morar em Ribeirão das Voltas [localidade de Lumiar na margem oposta do rio Macaé]. Ela contava que lá subia morro e que meu pai era um homem muito severo. Dizia também que na época dela quase não se via dinheiro. Faziam-se trocas. Trocava-se aipim por inhame. Arroz quase não existia aqui. Era comida para os domingos. Carne era de porco ou de galinha. E tudo se trocava.

AVS – Seu pai, sua mãe e seus irmãos deixaram Lumiar por volta de 1933, quando a senhora tinha 4 anos. Foram para onde?

Hilda – Para um lugar chamado Guararapes no estado de São Paulo, a três quilômetros da cidade. Ficamos lá 12 anos.

AVS – E lá em Guararapes, o que sua família fazia?

Hilda – Meu pai foi ser meeiro em uma fazenda de gado. Tinha também arroz, feijão, batata. Plantavam também café, mas não era a terra do café. Ele tomava conta da fazenda e nós ficamos trabalhando com ele na roça. Minha mãe, que era muito sociável, costurava e começou a querer ir para a cidade e empregar os filhos em casas de famílias. Eu fui para a casa de uma professora, cujo marido era médico. Ali, aprendi a ler e escrever. Trabalhei três anos com essa família, depois fui para a casa de outra família. Minha irmã também foi para uma casa de família, meu irmão mais velho foi para uma outra fazenda, depois foi trabalhar em um restaurante. Quando fomos para a cidade de Guararapes meu pai trabalhou com algodão. Dali fomos para Valparaíso, uma cidade a três horas de trem. Lá trabalhei em casa de família, trabalhei no matadouro e vendia bucho na rua. Minha mãe continuou costurando e trabalhando para casa, enquanto meu pai era assalariado e pagávamos aluguel [para morar].

Mais tarde, já morando em Niterói [desde 1946], meu pai tinha se aposentado e voltado a trabalhar no mercado Santo Antônio, quando foi assassinado [em um assalto, em 1959]. Minha mãe tinha uma pequena herança com que comprou um terreno em Lumiar perto da igreja, fez uma casa onde morou muito tempo sozinha. Minha filha Ermelinda veio morar com minha mãe em Lumiar [no início dos anos 1970].

Lembranças e explicações

Carlos Maria Marchon (1848-1929) foi um dos fazendeiros mais poderosos de Lumiar no período da cafeicultura. Filho mais velho de Jean Claude Marchon e Marie Balmat, imigrantes suíços chegados a Nova Friburgo em 1819, era capitão da Guarda Nacional e proprietário de escravos. A sede de sua fazenda era o casarão, ou chalé, da praça que atualmente tem seu nome, no centro da localidade.

Alda Eufrásia de Oliveira Marchon (1901-1998) era sua filha, no segundo casamento. Nas lembranças que ficaram para Hilda Berbert Gonzalez, filha de Alda no casamento com Ataliba Leopoldo Berbert, esta teria chegado a conviver com escravos no casarão. Diz Hilda sobre sua mãe: “Ela foi criada por escravos, contava que ia a cavalo aos bailes e, quando voltava, as escravas iam tirar suas meias e lavar seus pés”.

Existe aqui uma incongruência de datas: a escravidão terminou – pelo menos, legalmente – em 1888, Alda Marchon tinha 20 anos em 1921, isto é, 33 anos depois da Lei Áurea, o que seria muito tempo para que a escravidão sobrevivesse a sua extinção legal.

Hipótese possível para explicar essa contradição é a seguinte: mesmo com a escravidão extinta legalmente algumas escravas domésticas teriam continuado a conviver com as famílias dos senhores na condição de criadas. Se recebiam salários, o que as diferenciaria das escravas, é uma questão que pode ser esclarecida pela afirmação de dona Hilda, apoiada em relatos de dona Alda, de que praticamente não havia dinheiro em circulação em Lumiar em sua infância e juventude. Se essas criadas domésticas não recebiam salário porque não estavam em uma economia monetarizada, pouca coisa poderia diferenciá-las das escravas. Se esta hipótese é verdadeira, pode-se afirmar que as relações sociais do tempo da escravidão continuaram por muito tempo ainda, o que confirmaria a lembrança de Alda transmitida a Hilda.

Outro problema relacionado a datas está no fato de Hilda afirmar com certeza ter conhecido o avô, Carlos Maria Marchon. Pelos dados disponíveis, o avô teria morrido em 1929, no mesmo ano do nascimento da neta, que acredita ter convivido com ele até os 4 anos. A explicação mais simples para essa diferença é haver erro em alguma das datas. Outra seria um engano da entrevistada, que pode ter confundido suas lembranças do que viu realmente nos primeiros anos da infância com o que ouviu contarem.

Os hippies em Lumiar

Surgidos nos Estados Unidos, em meados dos anos 60 do século 20, os hippies, são parte de um grande movimento de contestação da cultura dominante no mundo ocidental, associada à busca desenfreada do lucro, à guerra, à resrtrição às liberdades e aos direitos civis. Partidários daquilo que se chamou revolução sexual, os hippies opunham à guerra do Vietnã o dístico make love, not war (faça amor, não a guerra).

Um tipo de estética inovadora surgiu com os hippies. Um marco foi o Festival de Música e Arte de Woodstock, em agosto de 1969, em Bethel, estado de Nova Iorque, com 500 mil participantes, com a presença de figuras da música de protesto e do rock, como Richie Havens, Joan Baez, Janis Joplin, The Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Crosb, Still, Nash & Young, Carlos Santana, The Who, Jefferson Airplane, e Jimi Hendrix.

No Brasil, na época, havia a ditadura militar e um modelo econômico-social que ficou conhecido como modernização conservadora, em que o crescimento se dava sem qualquer alteração da secular estrutura de privilégios e exclusão social e que teve como uma de suas consequências a favelização das grandes cidades do país.

Noêmia Brust Klein e seu marido, Liberino Klein foram pioneiros do negócio de turismo em Lumiar. Mudaram-se de Rio Bonito em 1964 e compraram as terras onde hoje está a Pousada Klein. Viveram da agricultura, mesmo quando, em 1969, se iniciaram no turismo, com uma pequena pensão. A então Pensão Klein atendia aos poucos viajantes comerciais que se aventuravam pela região. Dona Noêmia conta que às vezes ficavam até três meses sem um hóspede.

Dona Noêmia e familiares entendem que os hippies foram os iniciadores do turismo em Lumiar. A partir deles, outros públicos começaram a se interessar pela região.

O comportamento incomum dos hippies foi motivo de estranhamento para a população tradicional local. Edimar Heiderich, atualmente diretor de escolas municipais de Lumiar, lembra das preocupações que os hippies provocaram ao chegar à localidade, no final dos anos 60. Diz que eram considerados “o mau caminho” e que “as crianças eram proibidas de conversar com eles.”

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