A música, a história e outras histórias

quinta-feira, 04 de agosto de 2011
por Jornal A Voz da Serra
A música, a história e outras histórias
A música, a história e outras histórias

Maurício Siaines

Marcus Wolff é professor de história e de música na Universidade Candido Mendes, onde criou, no campus Nova Friburgo, junto com a professora Débora Breder, o projeto de pesquisa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares: Imagem, Memória e Identidade (Neimi).

Sua prática profissional se apoia em uma experiência original, que alia história da arte e estética, e também a musicologia. Em conversa com A VOZ DA SERRA, que começou em São Paulo, quando foi apresentar trabalho em congresso da Associação Nacional de Professores de História (Anpuh) e continuou pela internet, Marcus apresentou uma resumo de sua experiência e opiniões sobre a relação entre a música e a vida social.

A VOZ DA SERRA – Sua formação em música e em história sugere a seguinte pergunta: Como você foi juntar essas duas especializações?

Marcus Wolff – Nasci no Rio de Janeiro em 1965, e comecei a estudar música com 5 anos de idade. Nessa época, vivia na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio. Minha avó materna era pianista e meu avô alemão gostava muito de música clássica, tendo levado meu pai para a Alemanha na década de 30, onde ele estudou violino. Minha mãe, neta de italianos e alemães, tinha também o gosto pela música, tendo se dividido entre a filosofia e a música por toda sua vida. Incentivado por meus pais, tive aulas de piano com pianistas de carreira internacional, mas acabei tomando o gosto pela história e fui parar na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em 1983, onde fiz minha graduação em história, e comecei a tomar gosto pela pesquisa, especialmente no campo da história da música. A graduação em música pela UNI-RIO foi quase paralela (terminei em1989) e fui para o mestrado em História Social da Cultura na PUC-Rio, em 1993.

AVS – E a continuação no mestrado e no doutorado como foi?

Marcus – No mestrado, em projeto orientado pela professora Berenice Cavalcante, tratei da construção da linguagem tonal e o processo de racionalização na música, considerando-se os diferentes contextos em que se deram, e sua relação com as ciências, as artes e os problemas religiosos europeus no século XVI. A tese de doutorado trata do nacionalismo na música, enfocando como foi concebido por Mário de Andrade no Brasil e por R. Tagore, na Índia nas primeiras décadas do século XX. Além das ideias dos pensadores, também foram analisadas canções em que compositores ligados ao projeto estético-político nacionalista procuraram manifestar as identidades nacionais que estavam sendo construídas também através das artes e da música. Essa tese foi orientada pelo professor José Luiz Martinez, semiólogo e compositor, tendo sido defendida em 2004 no Depto de Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

Entre 2006 e 2007, desenvolvi uma pesquisa no Laboratório de Etnomusicologia da Escola de Música da UFRJ, sobre os grupos de música indiana da cidade do Rio de Janeiro e sua relação com o contexto em que vivem e produzem seus festivais.

AVS – A musicalidade de um povo representa sua vida?

Marcus – Creio que sim pois a musicalidade é algo muito amplo, podemos compreendê-la como algo que envolve não apenas a música produzida pelos músicos amadores e profissionais, mas também o gosto musical da comunidade e o tipo de relação que se mantém com a música. Como a música é uma linguagem que comunica através de signos não verbais revela muito dessa sensibilidade e do sentido estético que as pessoas possuem, mesmo quando não se dão conta disso. É por isso que etnomusicólogos como Thomas Turino têm escrito sobre a música como fonte para a afirmação de identidades, mostrando como linguagens não verbais como a música e a dança são modos diretos de conhecimento, mais ligados ao campo da emoção, já que não mediatizados pela palavra e por isso mesmo muitas vezes ligadas aos processos identitários, tanto individuais quanto coletivos.

AVS – O choro, ou chorinho, nasceu em meados do século XIX. Lá pelos meados dos anos 1950, foi deixado meio de lado com a chegada da bossa nova, mais tarde da música de protesto e outros gêneros musicais como a jovem guarda e o tropicalismo. Depois dessa “onda” dos anos 1960-70, voltou a ter força na preferência popular. Como você entende essas mudanças no gosto popular?

Marcus – No campo da estética, a questão do gosto surgiu no século XVIII, quando os filósofos que refletiam sobre as artes perceberam que não era mais possível seguir um modelo predeterminado do que deveria ser o belo ou de como a arte deveria representar esse belo ideal. Como o individualismo avançava na sociedade europeia nessa época nos mais diversos campos, a questão do gosto individual foi colocada e também as questões ligadas à recepção da obra, incluindo o modo como nossos sentidos percebem e filtram determinados aspectos da obra de acordo com padrões que foram construídos ao longo de nossa formação.

Então, esse retrospecto nos ajuda a compreender que o gosto está ligado a esse processo social e político iniciado pelo iluminismo que gerou posteriormente o artista romântico e o conceito de gênio como alguém capaz de romper com o passado para criar algo novo.

AVS – Um músico precisa vender seu produto, como qualquer outra pessoa, mas às vezes vemos música produzida para atender demandas. Outras vezes, parece que demandas são criadas ou induzidas. Como você vê essa relação entre criação artística e mercado?

Marcus – Bem, já na época de Beethoven os compositores tiveram que lidar com o mercado, com um público anônimo que se formava através das sociedades e associações musicais. Se na época de Mozart, não havia espaço para o gênio inovador que se afastava do padrão estético cortesão, já na Viena de Beethoven e Schubert era possível exprimir os dramas do eu ou fugir para um mundo de sonho. Mas por outro lado, tiveram também de organizar concertos para divulgar suas obras e lutar para que as leis da propriedade artística, surgidas no final do século XVIII, fossem cumpridas. Nesse contexto, os escritores e depois também os compositores deixaram de escrever para uma classe social privilegiada com um padrão estético homogêneo e internacional e passaram a se dirigir para um mercado autônomo, para um público indeterminado que abarcava setores sociais mais amplos que aos poucos criaram também uma demanda por obras virtuosísticas e sentimentais.

Isso tudo ilustra os dilemas da relação entre artista e sociedade que têm sido analisados por sociólogos, historiadores e pensadores, dessa relação muitas vezes tensa e complexa. Assim, se Norbert Elias nos revela essas tensões em seu magistral trabalho sobre Mozart, Theodor Adorno aborda as tensões dessa relação no século XX, sobretudo após o surgimento da indústria cultural que trouxe para dentro do campo da criação cultural a lógica nascida do mundo das fábricas, a chamada racionalidade instrumental, minando a autonomia do processo criativo e inserindo a obra dentro das necessidades do sistema.

Então, levando em conta essas análises, mas também as contribuições dos etnomusicólogos, acho possível afirmar que há pouco espaço para a experimentação de novas linguagens na tradição que herdamos das vanguardas europeias, tão defendidas por Adorno. Mas vivemos num contexto que também não é mais dominado pela indústria cultural, pois as novas mídias têm rompido com o monopólio dos grandes estúdios, das grandes gravadoras. Percebemos uma maior fragmentação e segmentação dos gostos e por outro lado a compressão espaço-temporal da “aldeia global” parece aproximar diferentes povos e culturas, tornando possível um afloramento do “localismo”, que possibilita novos hibridismos, novas criações que parecem ir contra a tendência padronizadora da globalização. E os artistas que perceberam isso, tal como os primeiros românticos, buscando seu público, estão interagindo com ele, esteja ele onde estiver, mesmo que além das fronteiras nacionais.

AVS – Você andou pelo mundo ... pelo menos foi para a Índia, que é do outro lado do planeta. Nesses caminhos, pensou e exercitou também a música. Fale dessa experiência.

Marcus – Sim, eu fui para a Índia pela primeira vez em 1989, com meu professor de composição, H. J. Koellreutter, que trouxe a música de vanguarda para o Brasil nos anos 40 e se tornou desde então uma figura central no campo da música erudita aqui.

Para mim, as duas primeiras viagens para lá foram marcantes, porque ao mesmo tempo que houve um encantamento pela cultura (não só pela letrada, mas também pela cultura das ruas, da culinária, do gosto estético presente nas roupas, nos sons diversos, da religiosidade), também vivi na pele um choque cultural quando senti como as hierarquias e o sistema social baseado na desigualdade oprime as pessoas. Acho que nunca vou me esquecer das conversas que tive com mulheres musicistas que tinham se casado com famílias que as impediam de cantar ou tocar seus instrumentos musicais. Falo de casamento com famílias porque elas nunca puderam escolher seus maridos e foram viver nas casas das famílias deles, como manda a tradição. Isso, aliás, me ajudou a compreender melhor algumas questões de gênero e classe na nossa sociedade, onde as coisas não são tão explícitas mas ainda bastante marcadas pela desigualdade, eu acho.

Voltei depois para Calcutá, em 2002, para fazer minha pesquisa de campo ligada ao nacionalismo musical indiano e aí encontrei uma outra Índia, muito mais híbrida, vivendo o conflito entre a ocidentalização e suas diferentes tradições. Durante a pesquisa de campo conheci não apenas o pensamento musical de Tagore, o primeiro modernista indiano, mas também suas ideias sociais e políticas, muito avançadas para seu tempo, no contexto em que vivia. Foi muito interessante também conhecer alguns de seus seguidores, professores e músicos que ainda lutam pela construção de um país menos desigual, mais fraterno, onde as diferentes comunidades possam dialogar e conviver com a enorme diversidade que existe lá.

Acho que a questão do respeito pela diferença está muito presente lá, tem sido muito discutida, chegando ao ponto do governo criar leis diferentes para cada comunidade (eles tem leis de casamento diferentes para hindus, cristãos e muçulmanos) e isso pode ser um exemplo para nós brasileiros de respeito às diferenças. Esse tema me sensibiliza bastante, e talvez tenha sido alimentado por minhas experiências indianas, que contrastam com a intolerância que aqui me parece ser mais forte do que lá.

AVS – O ensino de música voltou a fazer parte dos currículos escolares. Que contribuição você entende que isto pode dar à formação das pessoas e, mais exatamente, em que a experiência de conhecer alguma coisa de música pode formar melhores cidadãos?

Marcus – Acho que pode contribuir para humanizar nossa sociedade que, especialmente no período da ditadura pós-64, caminhou em direção ao ensino tecnicista, voltado para o mercado de trabalho e as necessidades do capital. Não sou contra o mercado, como falei antes, mas contra empresas desumanas que não investem na capacitação e no crescimento de seus funcionários ou que não os valorizam devidamente. A educação musical pode ser uma alavanca para a transformação social desde que seja elaborada com objetivos libertadores e não disciplinadores, pois sendo uma linguagem a música pode transmitir tanto valores retrógrados, como o culto a um ditador, quanto ideias libertárias de respeito à natureza, de respeito aos povos indígenas, imigrantes, quilombolas etc. Então, é preciso ter muito cuidado com a educação musical e estar atento ao tipo de educação que se vai implementar com esse “retorno” da música às escolas públicas – se a música vai contribuir para a construção de uma sociedade multicultural ou se vai servir para a manutenção das relações assimétricas que vêm desde os tempos coloniais.

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