Maurício Siaines
Geni Amélia Nader Vasconcelos nasceu em Nova Friburgo, em 1947, estudou no antigo Externato São José, “escola mista que marcou toda uma geração de friburguenses”, passando depois, ao iniciar o antigo curso ginasial, para o Colégio Nossa Senhora das Dores, onde fez também o curso normal. Sempre viveu na cidade, graduando-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, onde trabalha, desde 1971, com sociologia e com didática. Trabalhou também na rede pública estadual, onde se aposentou. Saiu de Nova Friburgo apenas para fazer cursos de pós-graduação em antropologia social e sociologia da educação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e posteriormente mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Durante dez anos, participou de grupo de pesquisa de estudos do cotidiano, na Uerj, coordenado pela professora Nilda Alves, e é hoje coordenadora pedagógica do Colégio Nossa Senhora das Dores. Realiza também alguns trabalhos com projetos de formação de professores, inclusive em outros estados do Brasil, como Maranhão, Pará e Amazonas, onde as Irmãs Dorotéias têm escolas.
Geni Nader deu entrevista a A VOZ DA SERRA, na última terça-feira, 24, a partir da repercussão que tiveram as declarações e o posicionamento públicos da professora Amanda Gurgel, do Rio Grande do Norte, que têm circulado pela internet sugerindo a discussão da educação de um modo geral e do papel dos professores. A partir do que vem sugerindo a presença de Amanda nas diferentes mídias, a conversa girou sobre o educação e também sobre a relação entre o pensar e o fazer em diversas áreas de atuação humana.
A VOZ DA SERRA – O que você diz das entrevistas da professora Amanda Gurgel que têm circulado pela internet?
Geni Nader – Quando eu ouvi o que ela falou naquela audiência pública, percebi que sua fala era um convite para que continuássemos atentos ao problema. Inúmeras vezes o tema nos toca, mas algo nos leva a não continuarmos atentos. Com a professora Amanda, isto não aconteceu. Não só pelo grande interesse que tenho na questão da educação, sobretudo pelo jeito firme, determinado e, de certo modo, até delicado como ela tocou em determinadas coisas. Ela conseguiu mexer com as nossas emoções. Não no sentido sentimentalista, mas apresentando o professor em seu cotidiano, com seus sonhos, seus projetos, suas mazelas, seus problemas, convidando a uma outra postura, outro posicionamento em relação a esse cotidiano. Pareceu-me particularmente interessante o modo como ela se dirigiu à secretária de Educação, recuperando uma afirmação da secretária de que o assunto salário estaria fora da discussão. Creio que este foi um dos pontos da fala que mais me tocou porque foi um convite para desnaturalizarmos aquilo que está instituído, para não postergarmos decisões e mudanças que precisam e podem ser feitas. Ela me fez lembrar [Bertold] Brecht que apelava para que nunca se dissesse “isto é natural”. Creio que, face a todas as questões sociais, a tudo que nos toca, este é um posicionamento fundamental: entendermos como as coisas são construídas e como elas podem ser reconstruídas e reinventadas, como podemos lidar com aquilo que está instituído.
Também me pareceu muito importante na fala da professora Amanda o modo como ela se dirigiu à secretária, à Promotoria e aos deputados. É uma prática muito comum atribuirmos ao outro, aos tantos outros, a responsabilidade por aquilo que também passa por nós. Ela chamou a atenção daquele grupo responsável pela condução de políticas públicas para sua responsabilidade, convidou o grupo a não atribuir a outros a responsabilidade pela mudança.
AVS – Foi também importante ele ter chamado a atenção para o fato de o problema da educação não se resolver apenas pela presença do professor em sala de aula ...
Geni Nader – Sem dúvida é muito mais do que isso. Na verdade, creio que uma primeira luta da educação foi criarmos escolas, depois, conseguir manter alunos nessas escolas. Mas manter com que escola? Qual é a qualidade da educação? Que educação é capaz de atender às tantas necessidades que a sociedade contemporânea, cheia de mudanças intensas e desafiadoras, coloca para a educação? A presença do professor na escola é um ponto inicial, mas não dá conta de todo o mar de questões que os professores têm colocado em seus movimentos a favor da educação de qualidade.
AVS – A criatividade seria uma dessa questões?
Geni Nader – A escola pode favorecer mais ou menos os processos criativos. Creio que quando falamos do que acontece nas escolas e sobre o fazer dos professores e alunos, com frequência utilizamos uma fala mais reducionista, que aponta coisas que ainda precisam ser feitas. Mas ao lado de tantas coisa que ainda precisam ser feitas, podemos observar, se tivermos olhares e ouvidos mais atentos ao cotidiano, que há efetivamente processos de criatividade circulando pelas escolas. Não podemos quantificar esses processos, mas precisamos trazer mais à cena o que é produzido na escola. Quando abafamos esses processos, impedimos que eles contagiem outros e geram novos processos. Sempre me incomodei com o modo reducionista de se encararem escolas e professores, que só observa o não fazer desses sujeitos e nesse espaço.
Uma vez, em uma conferência, ouvi uma fala, que me tocou bastante, que dizia que, quando nós quisermos perceber espaços de criatividade devemos olhar para os grandes centros do mundo, ponta para a produção de pesquisas e de ciência. Mas devemos também olhar para aqueles países, aqueles ambientes em que a dureza é tão grande, em que os recursos são tão difíceis, que as pessoas são convidadas a serem criativas. Creio que a escola, apesar das inúmeras mazelas, de seus inúmeros problemas, tem espaços de criatividade e precisamos trazer esses espaços à cena, precisamos apresentar o professor como alguém que reinventa a escola no seu cotidiano. Esta também é uma luta da educação brasileira. Isto não minimiza, pelo contrário, aumenta a necessidade de lutarmos de maneira determinada e firme por uma alteração significativa nas condições de trabalho de professor e do seu salário.
AVS – Fale um pouco sobre a relação entre o pensar e o fazer, a escola e a vida social.
Geni Nader – Sem dúvida nenhuma, já ouvimos questionamentos sobre a necessidade de estudar. Lembro-me de alguns alunos trazerem essa questão: Para que estudar? O sentido da escola é sempre alvo de questionamento, especialmente em uma sociedade em que a escola apresenta a possibilidade de se ter um emprego melhor e um ganho maior. Essa é uma questão embutida em muitas falas que percebemos aqui e ali. Uma grande tarefa, nesse processo de reinvenção da escola, é insistir no sentido de poder apresentar a escola como um outro modo de se compreender e se experimentar o mundo em suas diversas dimensões. Na dimensão de pensar o mundo e de adquirir caminhos para se agir. Vivemos um período histórico em que as mudanças são tão intensas que o mais importante é aprendermos a aprender e a fazer e questionar o sentido do conhecimento. A modernidade, ao priorizar o racional, desprezou outros saberes. Desprezou os saberes que vêm da prática, os saberes que dizem respeito aos afetos. Esses outros saberes mostram sua pertinência e cobram sua entrada nessa cena.
AVS – Você pode dar um exemplo disto?
Geni Nader – Sim, o exemplo disto é que quando pensamos em currículo escolar, pensamos como as diversas disciplinas são distribuídas nesse currículo, observamos que algumas disciplinas mais ligadas à sensibilidade, como a educação artística, mais ligadas ao corpo, como a educação física, acabam por ocupar uma carga horária menor. Esta distribuição não é uma coisa neutra, ela mostra o modo de se hierarquizarem saberes próprio da modernidade. Não estou dizendo que essas áreas hoje priorizadas não sejam importantes, afirmo apenas que outras áreas foram deixadas de lado. Com isso, mostra-se a desvalorização de alguns saberes.
Gosto muito de pensar a educação a partir da perspectiva do biólogo chileno Humberto Maturana, que nos convida a pensar o que nós desejamos para a sociedade e para o futuro de nossas crianças, de nossos jovens e de nosso país. Quando nos coloca essa questão, ele nos adverte que só no plano da razão não vamos encontrar a resposta para isso. Precisamos também nos deixar tocar por algo que nos move e que não pode ser entendido de uma forma aligeirada, que são as emoções. Ele se refere às disposições corporais que nos levam a agir de determinada maneira. Falar assim das emoções não significa desprezar ou minimizar a razão, voltando às trevas. Significa apenas tirar de debaixo do tapete aquilo que nos move em determinada situação e, usando a razão, decidirmos se desejamos ou não continuar a ser movidos por aquela emoção. Isto tem muito a nos dizer em termos de educação. O que nos move em nossas argumentações referentes à educação? Que desejos efetivos temos no campo da educação?
É importante narrarmos para nossas crianças e jovens o mundo que desejamos. Que mundo é este? Sem dúvida, a questão da técnica é da maior importância. Mas o que entendemos por técnica? Colocamos a técnica a serviço de quê? Para que queremos a técnica? O Maturana nos convida a pensar essas questões. E a pensar também, junto com inúmeros outros estudiosos, que a tecnologia é de grande importância, mas ela sozinha, como qualquer outro aparato, não pode ser pensada como um caminho redentor para qualquer iniciativa, inclusive para a educação. Tudo depende do uso que nós fazemos da tecnologia. Ceio que vivemos um momento histórico de muita riqueza pela intensidade das mudanças em todas as frentes. E essas mudanças às vezes criam uma crença em um passado que seria durável, um passado que teria sido muito bom, em que as pessoas liam muito, sabiam muito, e que hoje as coisas teriam piorado. Creio que, frente ao presente, temos que pensar mais uma vez este tempo como um tempo de interrogações, em que a leitura assume outras formas mas também se faz presente, o que não significa dizer que estamos satisfeitos com a leitura que temos hoje. A escola tem problemas, sim, mas temos que lembrar que ela, se comparada à que nós tínhamos no passado, já mostra sinais que podem ser promissores, ela foi capaz de acolher toda uma população que esteve alijada de todos os processos de educação ao longo dos séculos. Não estou dizendo que basta colocar a população na escola, mas que temos que pensar aquilo que já temos e o que ainda não temos, considerar que podemos e devemos lutar pela construção do mundo que desejamos, fazendo deste tempo presente um tempo que nos convoque a concretizar nossos sonhos nos espaços em que estamos inseridos.
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