Maurício Siaines
Aricelso Maia Limaverde Filho é um personagem representativo de parte da população do quinto e do sétimo distritos de Nova Friburgo, Lumiar e São Pedro da Serra, aquela composta por pessoas que se mudaram para o lugar em busca da qualidade de vida inexistente nos grandes centros urbanos. Sua vida tem se caracterizado por mudanças, assim como aquelas a que está sujeita a população tradicional local, que, há menos de 30 anos tirava seu sustento exclusivamente da agricultura e hoje busca novas formas de viver. Nasceu, em 1967, na cidade do Rio de Janeiro, onde cresceu, e em 1988, teve um primeiro contato com Lumiar, para onde viria a se transferir em 1999. Graduou-se em química, fazendo depois mestrado e doutorado na área de química analítica. Antes de Lumiar, morava no centro do Rio, nas imediações da Lapa, bairro que, há mais de dez anos, voltou a ser um point na cidade.
Casado com Jennyfer, tem dois filhos — uma menina de 3 anos e um menino de 8 meses —, de quem se vê afastado por alguns dias na semana, por ser professor no campus Macaé da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aricelso conversou com A VOZ DA SERRA, no domingo 24 de abril, falando de sua experiência nesse processo de mudanças e das reflexões que faz sobre as atividades que realiza.
A VOZ DA SERRA – O que mobilizou você a vir para Lumiar?
Aricelso – A princípio foi uma busca por uma situação de menos estresse de vida. Trabalhava bastante no Rio, que é uma cidade muito boa para se morar, é uma cidade que oferece coisas maravilhosas, mas é preciso que se tenha tempo para isso, para curtir essas coisas. Assim, trabalhando e com as obrigações normais da vida você não aproveita o que a cidade pode oferecer.
Eu gostava muito de viajar. Minha irmã veio para cá em 1988 e comecei a frequentar o lugar, a princípio minha mãe também veio, colegas de faculdade. Uma colega tinha um sítio aqui na Serramar, e sempre íamos lá, fazíamos festas. Desde então, comecei a frequentar a região e gostar muito.
AVS – Nessa época já havia luz elétrica aqui?
Aricelso – Já, a luz elétrica chegou aqui entre 1986 e 1987. Não era uma luz tão potente como agora. Mas não tínhamos telefone e o ritmo do lugar era bem diferente. Hoje em dia, com o asfaltamento da Serramar e o próprio asfaltamento da Mury-Lumiar, o acesso ficou mais fácil, o que trouxe mais gente para cá. Antes, era difícil chegar aqui, a estrada para São Pedro também era de terra.
AVS – Você ainda estudava, não é?
Aricelso – É, fazia graduação [em química] na Rural [Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro].
AVS – Aí, depois, você fez o mestrado ...
Aricelso – ... na PUC [Pontifícia Universidade Católica], no Rio. Trabalhei com análise de mercúrio em peixes. Publiquei algumas coisas sobre isso.
AVS – Você fez um trabalho, também, sobre uma tinta usada em cascos de navios ...
Aricelso – ... aí já foi minha tese de doutorado[, também na PUC]. Trata de um dos grandes problemas que se tem hoje em dia sobre como um navio é pintado. Utilizam-se aí substâncias altamente tóxicas na tinta para evitar incrustações no casco do navio. A incrustação em um navio de grande calado, que vá cruzar, por exemplo, o Atlântico, se ele estiver muito incrustado, com muitas cracas e mexilhões e outros organismos, faz com que ele perca cerca de 20 a 40% de seu rendimento, esses organismos impedem que ele deslize sobre a água. Utilizam-se, então tintas que têm potencial tóxico muito grande e essas tintas são feitas com substâncias que têm grande potencial de desregulação endócrina para alguns tipos de organismos marinhos.
AVS – E isso chega a afetar muito a fauna marinha?
Aricelso – Sim, afeta bastante. Não tanto no mar aberto, mas em baías, como a de Guanabara, em áreas de circulação restrita de água, as fêmeas de algumas espécies começam a adquirir características dos machos, em decorrência do contato com as tintas dos navios. Não se altera o código genético do animal, mas se interrompe o metabolismo do hormônio feminino que as fêmeas param de produzir.
AVS – E isto em que tipo de bichos?
Aricelso – É comprovado esse feito em uma espécie de caramujo marinho, mas também em outros animais essa substância, o tributilestanho, pode acarretar esse tipo de desregulação hormonal. Em seres humanos, em mamíferos, em geral, existem enzimas que conseguem quebrar a estrutura dessa substância e, assim, teoricamente, ela não causaria grandes problemas, mas já existem casos relatados de pessoas que trabalham diretamente com essa substância e foram afetadas. Mulheres que trabalhavam com essa substância começaram a adquirir buço e pararam de menstruar.
AVS – E essa substância ainda é usada?
Aricelso – Atualmente, é proibido o uso. No Brasil, desde 2008 foi proibido. Desde que o país assinou a convenção da IMO, a Organização Marítima Internacional [na sigla em inglês].
AVS – Então não se usa mais essa substância?
Aricelso – Existe um mercado negro. Qualquer um que tenha um barco pode comprar a substância pela internet e misturar com a tinta para pintar o casco. Não existe fiscalização efetiva, apesar do banimento. E para estruturas off-shore, como as das plataformas de petróleo, não houve banimento até hoje, assim como nos dutos submarinos.
AVS – Agora, uma curiosidade: você estudou bastante uma questão que é do mar, ou dos rios navegáveis como os da Amazônia, e você veio parar aqui nesta nossa região de serra. Como foi essa mudança?
Aricelso – Aqui não estamos tão longe do mar, menos de cem quilômetros. Vim para cá pela paixão que tenho pela natureza e pela qualidade de vida que posso ter aqui, pelo bom relacionamento que as pessoas podem ter aqui, sem os grandes conflitos possíveis no meio de uma massa populacional muito grande. E quanto ao mar, minha questão não é bem o mar, mas as questões científicas de um modo geral. Quando vim para cá, trabalhei no Instituto Politécnico da Uerj, em uma área de engenharia que não deixava de ser relacionada com o mar, lidava-se lá com dutos de petróleo, submarinos ou em terra. Minha questão é a ciência. Vim para cá também pelo clima. Não vou negar que gosto do mar, mas sou louco mesmo é pela natureza. O mar no Rio de Janeiro é lindo, mas eu posso viver lá, até mesmo em frente à praia de Ipanema, e não ter condições de desfrutar dela. A proximidade do mar não significa necessariamente que se tenha a qualidade.
AVS – Essa sua definição pela ciência contribui também para a sua escolha de ser professor, não é? Como foi esse caminho?
Aricelso – Vim para cá, fiz concurso público para ser professor do estado, trabalhei em São Pedro da Serra, entre 1999 e 2006, tinha acabado meu mestrado e cursava o doutorado. Minha carga horária era 12 horas em sala de aula, que se dividiam entre a segunda e a sexta-feira, com seis horas em cada dia. Ficava no Rio na terça, na quarta e na quinta-feira e vinha para cá na sexta-feira. Pegava o ônibus no e vinha cumprir minhas seis horas à noite. Depois, pedi exoneração do estado e, paralelamente, trabalhei na Uerj aqui em Nova Friburgo, fui professor da Candido Mendes. Até que, em 2008, surgiu o concurso para o campus Macaé da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
AVS – Sua história de vida é interessante e não deixa e ser parecida com a de muita gente que escolheu viver nesta região de Lumiar e São Pedro da Serra. E nesta sua condição, como tem sido sua experiência com a população tradicional da localidade?
Aricelso – Sempre me senti bem, em casa, muito bem acolhido. Sempre tive e tenho contato com essas pessoas [da localidade], que são muito francas, as coisas são mais diretas, não existe uma sociedade de consumo tão próxima e tão imposta. Tenho espaço para poder trocar mais com os vizinhos. Há também a questão do tempo para estar com os familiares, não se tem aquela pressa que existe na cidade grande. Então, a gente se sente mais tranquilo. Tenho muitas amizades que criei na região e, apesar de todas as diferenças, nossa realidade é a mesma, sem nada que impeça que resolvamos os problemas comuns.
AVS – Esse povo local tem uma cultura que se desenvolveu nesse relativo isolamento e há movimentos que buscam resgatar os produtos dessa cultura. Como você vê essas iniciativas?
Aricelso – Acho muito interessante e uma das práticas aqui na escola, em São Pedro, é a feira ambiental, em que se buscam conhecimentos dos antepassados. Inclusive receitas. Foi feita uma espécie de uma cartilha que continha todas as receitas tradicionais da região. Houve algumas edições desse livrinho de receitas. Apresentou-se também o modo como se fazia o jacá, aquele cesto que se leva nas costas. Também o entalhe de colheres e outros utensílios de madeira. Essa busca tem que ser incentivada.
AVS – E essa população tradicional perdeu um modo de vida em que a agricultura tinha o significado econômico e simbólico, que hoje não tem mais...
Aricelso – ... e novos valores começaram a ser incutidos. O terreno em que moro hoje faz parte de um loteamento feito em área que antes era agrícola. Minha relação com as pessoas daqui sempre foi muito tranquila, apesar das queimadas e do uso de agrotóxicos, coisas que foram abandonadas porque eles não plantam mais. Assim, o terreno fica valorizado para práticas ambientais corretas. Acredito que a mentalidade dessa população esteja mudando e espero que se consiga ter a sustentabilidade necessária. Hoje, a agricultura não é o mais necessário para a região. O potencial turístico é outra coisa a ser desenvolvida. Quando fui professor do estado tive a oportunidade de estar com pessoas que se tornaram magníficas, alunos meus que terminaram o ensino médio aqui, foram para universidades públicas, formaram-se, fizeram mestrado e doutorado, inclusive em outro países, ou se tornaram profissionais de diversas áreas. Eles foram para fora, para o mundo, apesar de serem filhos de pessoas pouco escolarizadas daqui. Quando encontro os pais dessas pessoas, e mesmo de outras que não foram tão longe, mas que estudaram e se formaram, é sempre emocionante e fico eternamente gratificado por ter participado desse processo de formação, contribuindo para o crescimento dessas pessoas.
AVS – Pois é, você veio de fora e teve essa vivência dentro do sistema educacional. Essas pessoas a que você se referiu, que fizeram mestrado e doutorado, podem até se tornar exemplos, mas são poucas em relação ao total da população jovem local. Como você vê a contribuição que o processo educacional pode dar para a superação gerada pelo desmonte de uma cultura tradicional?
Aricelso – O papel da educação é essencial porque é dentro da escola que se tem que formar opiniões que dentro de casa não se tem. A responsabilidade da escola, assim, torna-se muito grande, dadas as transformações sociais e as mudanças no campo da informação, que são muito rápidas. Há um tempo atrás, o mundo era muito pequeno. Agora, os jovens têm um mundo muito grande e o papel da escola é mostrar que existem vários horizontes e que as pessoas podem fazer seus limites e ir onde quiserem. O professor tem que mostrar que existem coisas maiores e que esse lugar paradisíaco, para continuar a ser bom, tem que ser preservado dentro de um planejamento. Assim, os professores têm papel muito importante. É preciso que haja uma campanha para que os jovens estejam nas escolas e para que a escola dê, efetivamente, a formação necessária. Aqui houve um crescimento muito rápido, houve muita informação em pouco tempo.
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