Direito, vida social e soluções imediatas

quinta-feira, 07 de abril de 2011
por Jornal A Voz da Serra
Direito, vida social e soluções imediatas
Direito, vida social e soluções imediatas

Maurício Siaines

Marie Claude Hees é advogada e presidiu até recentemente a Comissão de Meio Ambiente da seção de Nova Friburgo da Ordem dos Advogados do Brasil — função de que se licenciou devido às limitações de comunicação e deslocamento que lhe foram impostas pelos deslizamentos de terra, pedras e árvores da região em que mora, o Córrego Dantas, cujas entradas e saídas possíveis, além das telecomunicações, foram totalmente obstruídas desde a madrugada de 11 para 12 de janeiro.

Casada com Bruno Hees, que é formado em técnicas agrícolas e medicina veterinária, Marie Claude também é engenheira química, formação que lhe permitiu ser empresária do ramo de produtos veterinários em São Paulo e fazer traduções técnicas para laboratórios franceses.

Ela nasceu na França e veio para o Brasil com 2 anos, para a cidade do Rio de Janeiro, e se considera brasileira. Bruno é carioca de nascimento, mas desde 1942 vive em Nova Friburgo, na mesma área em que mora hoje, que conhece bastante. Saiu do Córrego Dantas somente quando foi cursar a faculdade, voltando em seguida. Diz ser “um caipira que teve acesso à educação”. Depois do casamento, Marie Claude e Bruno estiveram em São Paulo, voltaram ao Córrego Dantas, que sempre consideraram seu domicílio, tendo um segundo momento da vida em São Paulo. Tiveram três filhos paulistas mas que foram criados em Nova Friburgo e estudaram no Colégio Anchieta.

Marie Claude deu entrevista para A VOZ DA SERRA, com participação de Bruno, depois de uma longa conversa, que começou nos caminhos semirrecuperados do Córrego Dantas e terminou em sua casa, na manhã do domingo 3 de abril. Ela trata de Direito, de questões sociais e ambientais, com base em sua experiência e com a motivação de tudo o que vem acontecendo depois da tragédia climática que abalou a Região Serrana do Rio de Janeiro.

A VOZ DA SERRA – Em sua opinião, o que caracteriza a relação entre o ser humano e a natureza nos tempos de hoje?

Marie Claude Hees – Nós vivemos a época do pêndulo. O pêndulo estava em um extremo, que era tirar o máximo da natureza, retirar tudo o que era possível da natureza. Agora, o pêndulo foi lá para o outro extremo, onde a natureza é o eldorado e temos que expulsar os habitantes porque eles estão danificando a natureza. Passa-se a privilegiar os animais e as plantas. Se nós formos tão radicais na opção por esse eldorado da natureza, vamos ter que importar toda nossa alimentação. Não vamos poder plantar, como acontece com Lumiar, como aqui perto, em Conquista, onde tínhamos grandes plantações que eram a fonte de alimentação do Rio de Janeiro. Porque as terras férteis estão nas planícies na beira dos rios, onde existe um material em decomposição rico para a agricultura. Topo de morro não dá agricultura. Temos, sim, que ter um controle. As autoridades do poder público têm que acompanhar, mas não vamos ser radicais e expulsar todo mundo.

AVS – Até porque, se essa lógica fosse seguida no mundo inteiro, teríamos que exterminar boa parte da humanidade. É preciso encontrar outra solução, não é?

Marie Claude – Exatamente. Outra coisa que me inspira receio: parque. Parque é uma unidade de conservação de uso totalmente restrito, não se podendo fazer nada, existindo ainda o entorno do parque, que também é composto de áreas de restrição muito grande. Parque em uma zona rural é viável, porque são matas de proteção, como o topo da serra. É compreensível. Mas parque dentro de um perímetro urbano, eu questiono, porque acho que, se as autoridades locais não têm condições de controlar construções, loteamentos clandestinos, teriam condições de fiscalizar o parque? Tivemos o problema da unidade de conservação de Cascatinha — localizada dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Caledônia, no em torno do Parque dos Três Picos —, onde a Polícia Militar não teve condições de controlar e tiveram de deslocar um batalhão florestal para dentro do parque para poder tomar conta. Se forem abrir um parque aqui, [na região da estrada Friburgo-Teresópolis], terão de instalar uma unidade de polícia, porque daqui a pouco vai haver grilagem de terras e outros problemas conhecidos da polícia ... estamos cansados de assistir a esse filme. Não acredito que se consiga implantar um projeto como este, que é maravilhoso, mas que será inviável na prática.

AVS – No momento atual, existem pressões no Legislativo por mudanças no Código Florestal e essa pressão é combatida pelos ecologistas, que talvez não deixem de ter razão. Que interesses são esses que movem essas pressões? Para fazer o quê? A questão que parece se colocar é a seguinte: dá para ser uma lei só para um país com tantas diferenças?

Marie Claude – O que está acontecendo é que o lado que quer diminuir a mata ciliar das margens dos rios são de grandes plantadores, são grandes áreas de agricultura intensiva...

Bruno Hees – Isso no Brasil central. Quando chegamos aqui, as áreas não são tão grandes. Veja-se aqui perto, em Conquista, as áreas de plantio de repolho e hortaliças. Eles mantêm três, quatro metros da beira do rio. Mas se forem respeitar a exigência dos 30 metros...

Marie Claude – ...não sobra nada.

Bruno – ...reduz-se a produção a 50%.

Marie Claude – E é uma produção hortigranjeira que precisa do clima da montanha. E Nova Friburgo é um município abençoado por águas. Temos água em todos os lugares, filetes de água em todos os lugares. Se formos manter 30 metros de todos esses filetes, não sobra espaço nenhum para se fazer qualquer coisa. Já ouvi dizerem que Friburgo está estruturada para uma população de 40 mil habitantes em áreas seguras e temos em torno de 180 mil habitantes, sem qualquer controle.

AVS – Aí se coloca outro problema que já é crônico. Como resolver isto do ponto de vista da Justiça e do meio ambiente?

Marie Claude – O que está sendo feito? A expulsão de áreas de risco e meio-risco, sem os estudos necessários. Há lugares que não precisavam ser interditados. O que acontece? Estão expulsando mas não se estão dando soluções. Não há espaço para onde encaminhar as pessoas, não há uma política habitacional, tem gente ainda não atendida das enchentes de 2007. A essa lista veio se juntar essa turma de agora, de 2011. E não se vê nenhuma construção. Nada foi feito. Já ouvi falarem em tom de ironia o seguinte: como Macuco não tem problemas de encostas, transfere-se a população para as fazendas quebradas daquela região e trazem-se os bois para cá, para pastarem aqui.

Bruno – Seria uma solução com cara de piada...

Marie Claude – ...mas explica a situação: nós não temos solução. Não adianta vir com radicalismos do tipo: vamos atacar o Córrego Dantas, que será o primeiro lugar a sofrer essa intervenção de se reservarem os 30 metros de distância dos rios e córregos. Há outros problemas, como o do Jardim Califórnia, outro bairro também muito castigado. Temos também o problema de Duas Pedras, que está também duramente castigado com pedras ameaçadoras acima do [Hospital] São Lucas, que está liberado para funcionar.

AVS – Você acha que não deveria estar?

Marie Claude – Dizem que os engenheiros foram lá. O prédio grande está um pouco de lado e não foi atingido pelas pedras, mas o terreno onde ficava o estacionamento, o depósito das bombas de oxigênio, o prédio menor da pediatria, aquilo tudo é rota de descida e foi por lá que desceu toda a água e lama que soterraram a Rua São Pedro, que até hoje está com terra pela metade das casas, onde houve mortos. Acho que existe uma falta de administração, falta de lideranças, falta de pessoas de visão. E não podemos partir para uma política de resolver o problema de uma vez, temos que fazer por etapas. O radicalismo está em tirar-se tudo, casas boas ou ruins, e estabelecerem-se os 30 metros de distância de rios e córregos. Mas só em determinado lugar. Por que a população desse lugar tem que carregar nas costas a desgraça e os outros, não?

AVS – Estamos tratando de dois problemas, um social e outro jurídico. Como o Direito pode se adequar a toda essa situação, ou como a sociedade pode se adequar ao que hoje é definido como Direito? Como entramos todos nessa história?

Marie Claude – Do ponto de vista do Direito, temos que olhar a dignidade da pessoa humana, o direito à propriedade e todos os direitos fundamentais. Estão se preocupando com as catástrofes que podem atingir essas pessoas. Mas as pessoas que têm ainda suas casas boas devem ter permissão para voltar a elas, justamente para atender aos princípios básicos de moradia e dignidade, e não deixá-las jogadas, nômades, por aí.

AVS – É preciso, então rever essas limitações impostas pelas leis, como a exigência dos 30 metros de distância das margens dos rios?

Marie Claude – Temos que ter uma política de proteção. Na Europa existem parques em todos os países, grandes parques, mas as cidades estão inseridas dentro desses parques, mas existe uma estrutura de escoamento de águas, de bueiros, que o poder público oferece. Aqui o poder público não oferece nada. O poder público tem um dever que não é cumprido e quer que a população faça todo o dever de casa e, se a população não conseguir atender a todas as normas, é penalizada.

Pelo que estamos acompanhando das prioridades dadas, o meio ambiente superou o problema social. O meio ambiente se tornou o problema número um e as pessoas que devem viver nele são colocadas em segundo plano. Quando deveríamos colocar, pelo menos, no mesmo nível. Não podemos tornar tudo proteção ambiental e, depois, ver o que fazer com as pessoas. Entre esse pessoal que, na situação específica de Nova Friburgo, encontra-se desalojado, alguns poderiam voltar às suas casas. Estas pessoas estão sem recursos, sem nada. Se tiverem familiares, muito bem, se não, vão simplesmente aumentar o contingente da pobreza. O habitante de Nova Friburgo, há muitos anos, vem sendo abandonado, não havendo controle de saneamento básico, de construções, e agora, de repente, querem recuperar o tempo perdido por questões, não sei se de convicção ou de interesses políticos, e atropela-se tudo sem um embasamento.

Bruno – Temos duas legislações entrando em choque, uma ambiental e outra social.

Marie Claude – Temos a Constituição que garante direitos básicos do ser humano, em normas pétreas, que são invioláveis, mas que, hoje em dia, não têm mais valor. O direito à propriedade é um deles, mas tem que ser atendida a função social da propriedade e está certo. A propriedade não pode ficar parada, tem que produzir, empregar pessoas, tem que ter o lado ambiental. Mas não se pode ter só a preocupação com o meio ambiente, nem voltar-se só para a produção, é preciso que haja o equilíbrio, que está faltando, o pêndulo está em um extremo.

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