Anabelle Loivos Considera Conde Sangenis
Sempre fui de contar histórias. E de recontá-las depois, porque bem-aventurados são, de fato, os que sabem ouvir. Por isso, andei ouvindo com coração e estômago todas as histórias que me chegam sobre Nova Friburgo, minha casa amada, onde tive minha formação leitora aguçada pelas Doroteias da Monsenhor Miranda.
Histórias duras de ouvir, por certo; no entanto, é preciso cantar pra alegrar a cidade: recontar a margem de seus rios, suas cheias, seus entornos, seus enleios. A geografia poética de uma terra de gente boa de trabalho, de pensamento, de alma – coisas de quem descende de peregrinos e sabe que é preciso reinventar sempre o caminho, e a passos rápidos pra dar mais alento.
Várias histórias apontam para os meus ouvidos, por vezes débeis, sem vontade de acreditarem no que escutam. O Dr. João Madeira me fala de um silêncio oco que impera pelos bairros, traduzindo o inexorável da catástrofe. Ele acha que os friburguenses ainda não estão chorando seus mortos como deveriam... A Prof.a Lucia Ramineli me conta de uma legião de voluntários que formigam pelas escolas, igrejas, anonimamente compartindo a dor dos que não conseguem sequer chorar suas desventuras. A Amanda Heiderich me diz que ficou sem ver a filha por três dias, com os avós isolada em lugar “seguro”, mas que perdeu colegas e alunos – ainda tenta localizar alguns deles, duas semanas depois. A Prof.a Geni Nader me relata sobre a perda de 30% do patrimônio histórico da cidade, tombado ou em vias de receber o tombamento. A Evelyne e o Felipe Ferreira me falam da orfandade de centenas de animais de estimação. Tantas histórias, águas, águas.
Mas a história mais impressionante que me chega de Nova Friburgo é contada por Jane Ayrão, do Colégio Anchieta. Hoje, ela saiu para sua ação habitual de voluntariado, e se encontrou com outro andarilho, Álvaro Ottoni, escritor e contador de histórias. Ele acabava de retornar do Alto do Floresta, onde visitara a única edificação que ficou de pé – a Escola Municipal Messias de Moraes Teixeira. Pois o resto “desceu”: casas, morros, vidas. Com a determinação de educador que é, Álvaro levou para o abrigo improvisado água, roupas, remédios, fraldas e livros. Não imaginava que este último item da cesta básica mataria a fome daquelas crianças de forma tão pujante.
Em meio a caixas e sacolas de mantimentos, colchonetes e cobertores, além de sacos funerários com corpos dentro (sim, a escola é o único local para guardar gente, pão e mortos), hordas de crianças silenciosas ficaram barulhentas quando o “Tio” Álvaro começou a ler e a contar outras histórias. E o cardápio ficou mais variado: nesta manhã, as crianças tomaram suco com Monteiro Lobato, comeram pudim de leite com A bruxinha que era boa e se deliciaram com o prato principal: poesia, poesia. A palavra encantada que pode alimentar uma infância estupidamente afetada pela tragédia.
Jane me conta tudo isso com a voz embargada, ao telefone. Diz que viu, em outros abrigos, cenas semelhantes. Crianças pegando os livrinhos, querendo mexer neles, chamando-os a si como os amigos que lhes faltam – porque os pais se ausentaram, o Estado se ausentou, e a imagem de sacos pretos espalhados pelos cantos precisa metaforizar o recomeço de outra história para Nova Friburgo e seus pequeninos.
Então, ouvidos aguçados, eu senti a bem-aventurança: ora, sou professora de literatura, filha da região serrana e absolutamente convicta do poder de reencantar que a palavra tem! Jane e Álvaro me desafiaram com o tamanho de sua generosidade. Eu não sei cozinhar, não sei plantar alfaces nem rosas, não sei fazer curativos, podia até comprar uma galocha e sair corajosamente pelas ruas de Friburgo, como fazem a Jane e tantos deliciosos poetas do amanhã que habitam aquelas plagas, mas eu agora sei como estar presente. Semeando livros à mancheia, reencantando o agora, tendo fé no que virá.
Mas, para isso, conto com a ajuda de vocês, colegas professores, alunos e ex-alunos, amigos de longa e de curta data, amantes da literatura, leitores destas linhas que, enviesadamente, lerão também os olhos e ouvidos famintos das crianças de Nova Friburgo. Recolho, a partir de já, doações particulares de gibis, livros infantis e juvenis e congêneres, para enviar à Jane Ayrão e sua equipe (o Colégio Anchieta, em Friburgo, centralizará essas doações para fazer chegar os livros às comunidades desabrigadas). Valem também livrinhos de plástico e de pano ou aqueles que a gente recebe das editoras para avaliar e adotar, no início do ano letivo... Minha casa e meu escaninho na Faculdade de Educação estão à disposição de vocês. Quem souber de algum contato interessante em órgãos públicos e privados ligados à difusão da leitura, por favor, diga “presente”! Basta me mandar um e-mail que eu faço o contato “oficial”.
Até a pequenina aqui de casa, senhorita Aymée, do alto de seus quase dez meses e extrema intimidade com os livrinhos, vai mandar para um/a amiguinho/a da serra um livro com um monte de espelhinhos dentro, para que ele/a possa se admirar e ver que a sua história de vida apenas começou ... E, quem sabe, mais pra frente, quando minha filha estiver a tagarelar em bom português, ela consiga contar aquela historinha maneira, que começa assim: “Era uma vez uma linda cidade chamada Nova Friburgo, que tinha uma pracinha cheia de árvores e banquinhos, vovós e crianças, pássaros e...”.
* Professora adjunta da Faculdade
de Educação da UFRJ, friburguense por adoção
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