Depois da tempestade, vem a bonança. Que assim seja! Mas em temporada de chuva – e de encostas instáveis - é preciso, sem alarmismo, continuarmos vigilantes: um olho na reconstrução, outro no céu.
Passados os primeiros dias da catástrofe nós, friburguenses (de nascimento ou coração), observamos que a ajuda externa começa a se desmobilizar, a mídia lentamente tira da pauta as notícias da Região Serrana, o zumbido dos helicópteros rareia e nós, como é natural, teremos que nos haver com a nossa Cidade. E com o desafio de reconstruí-la.
Como sobreviventes, temos a vida , bem supremo, para viver. Tantos, desgraçadamente tantos, não tiveram a mesma sorte. Choraremos por eles por um tempo, lembraremos deles sempre. Individual e coletivamente. Mas a reverência maior que lhes podemos prestar é lutar, no limite das nossas forças, para que uma desgraça parecida não volte a assolar a nossa terra.
Se os ventos e as tempestades são imponderáveis, nossas atitudes precisam ser responsáveis. Se não podemos controlar as intempéries, que lhes reconheçamos, com coragem e humildade, a certeza de existirem. E nos preparemos para enfrentá-las. Talvez o mito de sermos um povo abençoado por Deus (Deus é brasileiro!) nos faça sentir incondicionalmente protegidos. Mas pensamento mágico não impede que a lama escorra montanha abaixo nem mantém as rochas aderidas ao seu cume.
Gerenciar riscos exige como pré-condição a admissão de estarmos permanentemente sujeitos a eles. E em tempos de bonança nos preparemos para o momento da sua visita. Uma pergunta que não quer, e não deve, calar: poderíamos ter feito alguma coisa para evitar os danos na dimensão em que ocorreram? Há responsáveis pelo ocorrido? Há culpados, reparações são possíveis?
Em um momento de luto talvez seja menos doloroso falarmos de vítimas. E propalar a ideia de que fomos todos vitimados. É verdade, e não é. O infortúnio não acometeu todos da mesma forma. Se prédios de bom padrão despencaram em pleno centro da cidade, é na periferia e sob construções simples que continua-remos a encontrar mortos, eventualmente em número superior aos que já enterramos! Se o centro da cidade está quase limpo (agradeçamos calorosamente aos incansáveis garis daqui e seus colegas de fora), a periferia e o interior estarão por muito tempo transbordando de lama e pedra, que talvez sepultem corpos para sempre.
A desgraça que vivemos não se distribuiu por igual. Visite um dos 71 abrigos e veja quem está lá. O que será feito dessa gente? Se tornarão inquilinos sociais? Ganharão uma casa popular em algum momento futuro? Deixarão as áreas de risco que, mais do que lugares geográficos, indicam um espaço de banimento social?
Sacudir a poeira e dar a volta por cima é o destino dos vivos. Lutar pela vida, melhorar a vida, é o destino dos que sobreviveram. Talvez seja a melhor forma de fazer a reparação aos que não tiveram a mesma sorte. Nosso desafio principal não será reconstruir Nova Friburgo, mas construí-la sobre novos alicerces – de concreto e de decência. Reconstruir nos mesmos moldes o que ruiu pela ação das chuvas e da inépcia é preparar masoquisticamente o terreno para futuras desgraças.
Enquanto enxugamos as lágrimas, é possível que comecemos a caçar rancorosamente os culpados. Muitos dirigirão a si próprios as acusações. Não daremos a volta por cima com rancor. O outro extremo, mais tranquilizador, é acreditarmos que a natureza já lançou sobre nós uma quota suficiente de violência – e que nos poupará pelos próximos tempos. Não daremos a volta por cima com acochambrações.
Excluindo os ataques rancorosos a eventuais culpados e as auto-recriminações impiedosas, resta-nos a via da responsabilização individual/cidadã e coletiva - aliada ao reconhecimento humilde da nossa pequenez diante da Mãe Natureza, nem sempre tão benevolente como desejaríamos.
Esperarmos dos governantes, como devemos, atitude, ação determinada e ética, transparência e competência, não nos eximirá da nossa cota de co-responsabilidade na construção-reconstrução de Nova Friburgo.
Vigiemos os céus com diligência e com o outro olho fiquemos atentos e sejamos rigorosos com os governantes. Mas jamais esqueçamos que os tendo levado ao poder, tornamo-nos seus cúmplices.
(*)Carlos Pires Leal
Psiquiatra e Psicanalista - Médico da Unimed Nova Friburgo
www.carlospiresleal.com
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