Leandro Felga Cariello
Se Nova Friburgo é nova é porque há uma velha, ou ao menos uma que a precede. Chama-se Fribourg, e fica na Suíça. No primeiro quarto do século XIX, suíços e depois alemães chegaram à única cidade do Brasil criada por decreto do Rei de Portugal, D. João VI. Foi a primeira cidade do Brasil colonizada por alemães, antes mesmo das cidades do Sul que posteriormente se notabilizaram pela presença humana e cultural alemã. E foi a primeira colônia não lusitana fundada no Brasil. Depois vieram a Independência e a República, com a chegada de mais imigrantes, italianos, portugueses, sírios, além dos próprios brasileiros que lá já nasciam ou para lá iam. O objetivo do Rei português era fomentar a imigração europeia de forma organizada na então colônia. E a iniciativa fez parte da velha interiorização que felizmente ajudou o Brasil a se manter grande e indiviso. Foi também, e aí infelizmente, parte do velho discurso oficial de branquear a população. É história e não pode ser esquecida. Mas, entre o velho que é bom e o velho que é ruim, o fato é que para os que lá vivem, viveram ou a lá se referem com intimidade, basta Friburgo.
Foi a Friburgo da pujança dos industriais alemães da primeira metade do século XX, das festas de clube com lança-perfume legalizado da época pré-Janio, dos hippies e comunidades alternativas do distrito de Lumiar nos anos 70, a chamada “Geração Bendita”, denominação a partir do nome que um grupo de músicos e cineastas de Friburgo intitulou o que é conhecido como o primeiro filme hippie feito no país. Foi moda dos canoístas radicais nos anos 80, cidade decadente econômica e culturalmente nos anos 90 e que se reergueu na década seguinte com a liderança das indústrias de vestuário e metalurgia, do ecoturismo e da agricultura.
Foi a Friburgo da educação experimental da escola da Fundação Getúlio Vargas, que há meio século abrigou jovens que eram preparados fazer parte da elite intelectual do país. Os que estudaram certamente se lembram do tempo lá passado e da ousadia do projeto. Mas o colégio fechou. Era muito caro, dizia-se. E no Brasil colégio não pode ser caro. Jogador de futebol pode, e chegamos a celebrar as cifras. Conta de celular é cara, mas tem que ser, é óbvio. E a nossa propaganda é das melhores do mundo, embora cara, e todos também entendem – afinal, para ser boa como é, tem que ser cara. Mas colégio, não. Afinal, para quê instituições de ponta para formar os melhores? Perguntem a Harvard.
A cidade até teve o Barão de Nova Friburgo, que deixou parte de suas belíssimas propriedades para desfrute da própria cidade - vale visitar e apreciar o Parque São Clemente. Mas não é nem nunca foi cidade de nobres. E nunca foi ponto de descanso ou encontro da aristocracia brasileira, e seus cavalos, que vivia no Rio de Janeiro. Não tem palácios ou propriedades de veraneio com dezenas de funcionários. Nem campo de golfe. Para uns, uma decepção. Onde estão os palácios? - perguntam. E as casas de 15 quartos e bangalôs para hóspedes? - alguns querem ver. Será que encontrarei na rua o fulano de tal mais sete sobrenomes? Para outros, é até melhor deixar de conviver com isso. E para tantos, são fatos absolutamente indiferentes. Outros ainda podem ver nisso relações de causa e efeito que fizeram mais bem que mal para o ethos da cidade e de sua gente, que lá vive ou que para lá vai. E outros ainda podem ver aí a oportunidade de desenvolver teses sociológicas sobre o assunto, o que aqui não se pretende.
Friburgo virou a cidade dos montanhistas do Caledônia, dos campeões de ciclismo radical de trilha, dos que fabricam e negociam vestuário, da metalurgia, das universidades que se multiplicam e angariam lá mesmo ou atraem seus estudantes de fora, dos que plantam a terra e abastecem o Rio de Janeiro de hortifrutigranjeiros. Dos que deixam Friburgo e depois retornam de vez, dos que se vão de vez e retornam de tempos em tempos para rever amigos ou reavivar a boa memória. Daqueles que para Friburgo se vão das pequenas cidades vizinhas em busca de trabalho melhor ou do estudo que preferem fazer no interior que na capital. Cidade de artistas de primeira, dos que para lá fogem da cidade grande ou dos que para Friburgo se mudam para envelhecer em paz. É também a cidade dos chalés da região de Mury, das belas casas do Cônego, dos sítios de beira de rios límpidos e casas de fim de semana, algumas que deixam saudade até dos que não foram.
Não é idílica. Tem violência urbana considerável, a própria e a resultante da repressão no Rio de Janeiro que expulsou e expulsa muitos bandidos para o interior. Convive com desigualdades que o Brasil inteiro agora vê e tenta superar junto. E, principalmente, Friburgo tem ocupação descontrolada de encostas, uso inadequado do solo, assoreamento de rios, enfim, a velha interação homem-natureza como se inimigos fossem - e isso numa cidade com mais de 90% de área verde! Entretanto, não se pretende aqui, embora mereçam, identificar ou julgar culpados por desigualdades, pela degradação ambiental ou por alocações assassinas de verbas públicas que deveriam ter finalidade preventiva.
Para aqueles que vão aproveitar o verde e a tranquilidade, a cidade tem futebol de campo, cheiro de mato, as esculturas em barranco do grande artista Nêgo, as festas suíças, caminhadas sensacionais, canto de passarinho, uma pequena geada nas manhãs de inverno e boa gastronomia – mas sem pedantismo. E para os que lá nasceram ou passaram parte da vida, Friburgo é tudo isso e muito mais. É até mesmo a memória da Friburgo dividida entre o colégio dos padres e o colégio das freiras, e da certeza dos meninos de que entre um e outro haveria uma passagem subterrânea com objetivos inconfessáveis. De tão absurda a hipótese, chega a ser divertida depois de adulto - principalmente para alguém que, quando garoto, estudou com madres doroteias e padres jesuítas, e deles sempre recebeu educação e tratamento respeitoso que se espera.
Pois Friburgo acaba de ser destruída pela combinação da grandeza da força da natureza com a pequenez da inépcia humana. Os morros, rios e grandes pedras lá estão, e continuarão a fazer parte da bela paisagem. Mas a cidade ficou sem luz, sem ruas, sem acessos, sem comunicação, sem segurança, desolada e velando seus mortos às centenas. As famílias, despedaçadas pelas mortes e contando seus prejuízos. Os negócios, em frangalhos. As pessoas, com necessidades materiais urgentes. Mas a alma dos que lá nasceram, moram ou apreciam a cidade, essa continua forte. Ferida, chorosa, mas forte. E pronta para ajudar a recuperação.
* Leandro Felga Cariello é
advogado, friburguense
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