Um museu para Nova Friburgo

quinta-feira, 02 de dezembro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines

Lilian Barreto, gerente do Departamento Histórico, Artístico e Cultural da Secretaria de Cultura de Nova Friburgo, foi premiada, no último dia 15 de novembro, por seu mérito profissional. A premiação se deu especialmente pelo período em que dirigiu o Museu da República, no Rio de Janeiro, entre 1980 e 1990. Ao todo, apenas 50 pessoas foram contempladas com as medalhas, que têm a forma de uma moeda, de cerca de 5 cm de diâmetro, cunhadas em bronze pela Casa da Moeda e que serão as únicas, uma vez que a matriz para sua confecção foi inutilizada.

Além da medalha comemorativa do cinquentenário do Museu da República, Lilian Barreto já recebeu o título de Cidadã Benemérita do Estado do Rio de Janeiro, por reconhecimento do trabalho desenvolvido no Museu da República; Medalha Martim Affonso do Estado de São Paulo – Comemorativa do Mérito Cultural; a Medalha do Pacificador – honra máxima do Exército Brasileiro; o título de Cidadã da Paz – Comunidade Bahaih da ONU; e alguns títulos de cidadã de municípios brasileiros.

Lilian não é uma friburguense nata, por acidente. Sua mãe entrou em trabalho de parto descendo a serra. Tem especial carinho pela cidade em que voltou a morar há 22 anos, depois de deixar o Museu da República, numa escolha em que procurava, além de viver bem, passar um pouco do que adquiriu com sua experiência.

Sua gestão no museu começou com o trabalho de recuperação de tudo, inclusive o próprio prédio, abalado pela trepidação do metrô, então recém-inaugurado. Buscou recursos com empresários, a quem propunha a participação em partes que escolhessem para restaurar, para poder realizar a obra, conseguindo arrecadar o correspondente a 4 milhões de reais.

Lilian Barreto conversou com A VOZ DA SERRA, ocasião em que apresentou sua ideias, seus sonhos e projetos para Nova Friburgo.

A VOZ DA SERRA – A relação da instituição com o morador da vizinhança e com a sociedade de um modo geral foi uma das marcas da sua gestão à frente do Museu da República, no Rio de Janeiro. Poderia explicar isso?

Lilian Barreto – O importante é que o museu seja apropriado pela própria comunidade, pois, na medida em que comunidade tenha uma participação efetiva e não apenas contemplativa, ela ajuda na preservação do bem histórico. Este foi o primeiro passo que demos durante aquela gestão. Outro passo foi trabalhar com a criança a questão conceitual do que é patrimônio. Fizemos isso através de colônias de férias, em que pedíamos que a criança trouxesse um brinquedo, cuja propriedade fosse sua. Com o brinquedo introduzíamos o conceito de patrimônio dela própria, depois da família, até chegar ao conceito de patrimônio nacional. Não era uma coisa apenas falada, mas vivenciada. Levar uma comunidade a vivenciar uma história é que faz com que ela tenha efetivamente orgulho e se sinta realmente integrada à sua história. Esse foi o nosso grande mote. Foi nesse período em que eu estava lá no Museu da República que se introduziu, pela primeira vez, a ideia de educação em museu.

AVS – Ou seja, criou-se a ideia de um museu vivo, não é?

Lilian Barreto – Vivo! E houve também a restauração, que foi desde o subsolo até o telhado. Não só o edifício, mas todo seu acervo também. Restauramos a primeira bandeira do Brasil republicano. Ela estava dentro de uma caixa, jogada. Ela é feita em seda pura, bordada em ouro e prata. Nós a restauramos e ela está exposta até hoje. Trata-se de resgatar um direito à cidadania, que é o grande papel que tem esse museu.

AVS – Fale um pouco, por favor, sobre a importância dos museus na vida de uma sociedade.

Lilian Barreto – Em primeiro lugar, o conceito de museu tem se modificado ao longo dos anos. E exatamente a tentativa que fizemos foi tirar aquele conceito tradicional com acervo intocável e imutável, para ser um museu vivo, com a participação da comunidade. Se o museu não tiver vida própria, real, ele se torna um espaço totalmente sacralizado. Ele se torna um espaço que não pertence a uma sociedade, pertence a uma edificação, que fica sendo algo apenas do governo, sem participação comunitária. Quando introduzimos a educação no museu, começamos a modificar a mentalidade e o conceito do que é museu, que passou a ser uma coisa viva e participativa, onde se pode fazer interagirem música, cinema, espaços de alimentação. E, mais do que isto, museu tem que ter loja em que se vendam coisas com as suas grifes. Tudo isto faz com que as pessoas se apropriem do próprio museu. Então aquilo para que se olhava apenas contemplativamente tornou-se vivo.

AVS – Dentro dessa ideia de museu como uma coisa viva, até mesmo um jeito de falar pode ser considerado com parte do patrimônio histórico e cultural, não é?

Lilian Barreto – Com certeza. E outra coisa é que não se pode ter apenas a história escrita, mas também a cultura oral.

AVS – A senhora tem toda essa experiência do Museu da República. E aqui, em Nova Friburgo, o que se pode fazer?

Lilian Barreto – Friburgo não tem um museu, mas merece ter. É um grande sonho que tenho.

AVS – E como a senhora imagina esse museu?

Lilian Barreto – Imagino como um museu que conte a história de Friburgo, mas não apenas a história dos imigrantes, mas sua história hoje. A história das pessoas de hoje tem que estar inserida nesse museu. Precisa ter um dinamismo igual ou maior do que aquele que propus há 20 anos. Algo vivo para que a comunidade não olhe apenas contemplando belas peças, que seja uma coisa interativa.

AVS – A senhora imagina um local?

Lilian Barreto – O espaço adequado é esta Casa do Barão de Nova Friburgo, aqui do Centro. Não tirando o Centro de Arte, que faria parte da dinâmica. Um local de que as pessoas da cidade se sentissem fazendo parte.

AVS – Que experiência com história oral a senhora conhece que poderia ser exemplo aqui para esta nossa conversa?

Lilian Barreto – Em 2007, propus a criação de um centro de referência histórico-cultural de Mury, Lumiar e São Pedro da Serra. Começamos a levantar informações sobre a história das três localidades, com a participação do Sebrae. Uma das coisas que muito me emocionou foi a entrevista que fiz com rezadeiras. Que coisa sensacional! Não é pura e simplesmente fazer uma entrevista. Fizemos, inclusive, gravações em que o importante não é a história, mas ela própria contando sua própria história de maneira espontânea. Ela não só conta da sua maneira, como também coloca a si própria como parte integrante da história, o que é fundamental. É aí que se envolve uma comunidade e que se faz com que a comunidade seja participativa. E é isto que se deve buscar ao se criar um museu, que ele seja propriedade da sociedade, com essa interatividade.

AVS – A sociedade tem que se ver...

Lilian Barreto – ...e mais do que isso: saber que ali vai estar parte da sua história. Assim, os registros orais são fundamentais. Isso é de uma riqueza incrível. São os saberes e os fazeres que se recolhem, os artefatos, aquilo que o indivíduo constrói com suas próprias mãos e o que ele pensa. Quando o historiador pesquisa, ele precisa levar em consideração a antropologia, porque é através dos objetos, daquilo que ele ouve, dessas histórias que ele vai construir uma história. Eu me sentiria muito realizada se pudéssemos propor a criação de um museu. Não se trata apenas de “fazer um projeto” no papel. O projeto tem que sair das entranhas da gente e a gente tem que conseguir passar para os dirigentes governamentais o que é esse sentimento. Tem que vir de dentro, não pode ser uma coisa fria só no papel. Quando peguei o Museu da República, ninguém acreditava, era uma divisão do Museu Histórico Nacional. Fui a primeira diretora depois que houve a independência da instituição, na década de 1980. Muita gente me deu os pêsames. Mas é uma questão de desafio.

AVS – A senhora falou em Mury, Lumiar e São Pedro da Serra. Será que não seria o caso de se fazer um museu com muitos centros?

Lilian Barreto – É isto que eu penso quando falo em centros de referências histórico-culturais de cada localidade. Foi por isto que começamos a desenvolver esse projeto através do Sebrae. Cada núcleo desses pode ser um museu vivo. Hoje a vida é tão agressiva que a pessoa passa pelos lugares e não percebe, olha, mas não vê.

AVS – Estamos assistindo nos últimos dias, inclusive com transmissões diretas de televisão, as operações militares contra os domínios do tráfico de drogas na Vila Cruzeiro e nas favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Como a senhora entende que as atividades culturais, especialmente aquelas relacionadas com a conservação do patrimônio histórico, podem contribuir para que a vida social não se deteriore tanto, a ponto de exigir operações como estas que estão acontecendo?

Lilian Barreto – Ao assistirmos os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro, cabe-nos informar que, na época quando estive na direção do Museu da República, desenvolvemos algumas atividades educacionais com a favela do Morro Azul, no Catete, e com comunidades de rua carentes. Reunimos através da associação de moradores um grupo de “pichadores” e desenvolvemos ações de educação patrimonial e atividades culturais ligadas a artes plásticas, artesanato e ações relacionadas ao patrimônio (a partir de conceitos de patrimônios do indivíduo até ao conceito de patrimônio nacional) que propiciaram aos jovens outra oportunidade de escolha. Acho que não só o papel de uma instituição como um museu, e sim a ação cultural advinda de ações programadas que poderão contribuir para a abertura e a inserção dos jovens em novas oportunidades fora da marginalidade.

Um prédio cheio de histórias

O prédio onde hoje funciona o Museu da República, na Rua do Catete, no Rio de Janeiro, foi construído por Antônio Clemente Pinto, o barão de Nova Friburgo, para ser sua residência no Rio de Janeiro. Chamava-se inicialmente Palácio Nova Friburgo, posteriormente trocando de nome para Palácio do Catete. Tornou-se a sede do governo do país em 1897, em um jogo político obscuro, durante a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, condição que manteve até 1960, quando a capital do país foi transferida para Brasília, durante o governo de Juscelino Kubitschek. Foi ali que se suicidou o presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, depois de uma série de escândalos que ensejaram a trama política que levara a seu afastamento do poder. (MS)

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