Helder Caldeira
Às vésperas da eleição presidencial que irá definir os rumos do país nos próximos quatro anos, os principais pleiteantes à sucessão do presidente Lula parecem candidatos a prefeito de cidade do interior: uma diz que vai construir casas populares e postos de saúde, o outro oferece mutirões de cirurgia de catarata, a terceira via não promete nada e o socialista revelou-se grande humorista. Com candidatos assim, parece-me complicado propor um debate sobre administração pública e governabilidade, mas esse será o grande desafio para quem assumir a Presidência da República.
Infelizmente, a grande maioria dos eleitores, democraticamente ou não, faz sua opção nas urnas de acordo com interesses bem pessoais, algumas vezes até ilegais. Por conta de nossa ultrapassada legislação e de uma cultura escambagista encravada no peito do brasileiro desde que o primeiro português colocou os pés nessas terras, um grande pleito onde vamos escolher não apenas o presidente, mas governadores, senadores e deputados federais e estaduais, torna-se um gigantesco leilão de promessas e revela o espetáculo da desinformação em que vivem dezenas de milhões de cidadãos, alheios aos verdadeiros desafios que seus votos impingirão aos eleitos em 3 de outubro.
Segundo as mais recentes pesquisas, a base aliada ao presidente Lula irá eleger 52% dos governos estaduais, quase 70% dos deputados federais e 76% dos senadores. Nesse sentido, a candidata do atual governo, Dilma Rousseff, caso seja realmente eleita, tem tudo para governar sob um céu de brigadeiro. Os oposicionistas José Serra e Marina Silva teriam grandes dificuldades para administrar um país nessas circunstâncias e deles seria exigida uma extrema capacidade de negociação política, perfil que nenhum dos dois parece ter. É nesse diapasão da governabilidade que devemos, desde já, focar nossa atenção.
O problema é que quando o assunto é governabilidade, formar uma base aliada, construir uma maioria política e dividir com outros partidos a tarefa de administrar uma nação, cai num abismo de péssimos estereótipos e inviabiliza qualquer tentativa de salutar debate. Falar em maioria política remete diretamente aos autoritarismos egoísticos e esquizofrênicos de Hugo Chávez na vizinha Venezuela. Formar uma base aliada faz lembrar o famigerado escândalo do Mensalão, onde um capilé comprava o voto de apoio de parlamentares. Dividir a administração do país com as diversas correntes partidárias é o mesmo que dizer que há um polvo no governo federal, fatiado entre honoráveis excelências corruptas e reles petequeiros. Tudo isso trunca o real significado da governabilidade e coloca em xeque importantes conceitos democráticos.
Considerando um país de dimensões continentais como o Brasil, é impossível pensar numa administração pública coletivizada, generalista. É fato que alguns dos principais problemas são comuns de norte a sul, como a ausência de políticas públicas modernas e inteligentes nas áreas de segurança pública, educação, saúde e meio ambiente. Mas a construção de soluções efetivas e em caráter permanente terá de passar, por obrigação, pela diversidade de cada estado brasileiro. Não fala sério, por exemplo, quem faz propostas genéricas para a educação e coloca em um mesmo bojo a possibilidade paulistana de ter dois professores numa sala de aula e os professores maranhenses de classes multisseriadas que muitas vezes nem sala de aula tem. Também não fala sério quem discorre sobre o Bolsa Família e pensa que seu valor é igual no Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Norte, já que um quilo de feijão pode ter uma variação de até 200% entre um estado e outro. Para o bem e para o mal, o Brasil é desigual.
Apesar da ampla maioria legislativa que os lulistas, e consequentemente os dilmistas, devem conquistar nas eleições, os governos estaduais serão a pedra-de-toque para a próxima administração federal. A disputa está tão polarizada entre duas vertentes políticas, que é provável entrarmos em 2011 com 14 estados governados pela aliança em torno do PT e 13 estados sob domínio da coligação formada pelo PSDB. Mas é na visão política regional que os problemas já podem ser avistados no horizonte.
Tomando como base as pesquisas atuais, a Região Nordeste, por exemplo, irá eleger sete governadores lulistas, divididos entre PT, PMDB e PSB e apenas dois oposicionistas, uma do DEM e outro do PTB. O mesmo acontece no Centro-Oeste, onde provavelmente teremos três estados com PMDB e PT e só os goianos com administração tucana. Já o quadro na Região Norte deverá ficar no extremo oposto, elegendo cinco governadores entre PSDB, PTB, PPS e PMN e apenas um petista no Acre. O fato se repete na Região Sul, onde PSDB e DEM deverão ficar com dois governos e o PT isolado no Rio Grande do Sul. A Região mais equilibrada é o Sudeste, empatando no dois a dois. Sob a lógica política da governabilidade, essa discrepância é trágica e, sobretudo, determinante. Ao contrário do que dizem nossos analistas de ocasião, essa lógica é fundamental quando o assunto é a distribuição dos investimentos federais, mesmo que isso não seja correto.
É nesse momento que devem entrar em ação os representantes dos estados em Brasília, ou seja, os Senadores da República. Como são três senadores por estado, é necessário que exista uma consonância entre eles e seus respectivos governadores para construir uma incidência decisiva junto ao governo federal, funcionando como uma grande engrenagem que determina um cenário melhor ou pior em termos de governabilidade. Justamente nesse imbróglio é que o carro poderá enguiçar na gestão 2011-2014. Só há uníssono entre o governador e todos os três senadores em seis estados (RS, RJ, ES, MG, GO e BA). Esse número pode chegar a oito se levarmos em consideração que os senadores Garibaldi Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, e Epitácio Cafeteira, do PTB do Maranhão, pulam sempre para o lado do mais forte. De toda forma, é certo que teremos 19 estados onde os governadores estão em campos políticos diferentes de alguns de seus senadores, quando não dos três, como nos casos de São Paulo e do Amazonas.
Essa matemática política é a base da governabilidade no Brasil e é quem determina alcance real dos investimentos e a eficácia na implementação de políticas públicas que tenham vínculo com o governo federal. Essa lógica cruel se repete nas relações entre os governadores e os prefeitos municipais, aumentando, ainda mais, a distância entre o presidente da República e seus ministérios e os 5.565 municípios brasileiros. Isso sem falar na corrupção que, sistematicamente, no melhor vocabulário lulista, entra de sola e ajuda a engessar o meio de campo, fazendo com que R$ 100 provenientes da esfera federal se transformem em R$ 1 ao chegar na outra extremidade, ou seja, na esfera municipal.
É esse o grande desafio de quem pretende governar o Brasil: encurtar a distância entre a administração federal e o cidadão. Para vencer esse desafio será necessária uma reforma profunda em nosso sistema político-administrativo e uma premente adequação e modernização da nossa legislação. Só assim será possível conceber projetos e programas de Estado e não esses arremedos a que ficamos submetidos e que são colocados em risco cada vez que acompanhamos a passagem da faixa presidencial no alto do púlpito do Palácio do Planalto. O primeiro passo em direção a esse grande desafio é, certamente, a conquista da governabilidade.
Helder Caldeira
Escritor, Articulista Político, Palestrante e Conferencista
heldercaldeira@estadao.com.br
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