Sobre ler e ser

quarta-feira, 28 de julho de 2010
por Jornal A Voz da Serra

por Thiago Mercier

Surgiu uma vez a oportunidade de entrevistar o jornalista, professor e escritor Affonso Romano de Sant’Anna. A pauta me foi dada por ocasião de um seminário de educação que seria realizado em Campos dos Goytaczes, cidade onde eu trabalhava como repórter do caderno cultural do jornal Folha da Manhã. O bate-papo aconteceu por telefone, alguns dias antes do evento que levaria o escritor ao Norte Fluminense.

Literatura era um tema que não poderia fugir da pauta. Falamos, portanto, sobre o ato de ler e as políticas de incentivo à leitura – Affonso já havia ocupado o cargo de presidente da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Ele discorreu sobre os programas que já havia idealizado e posto em prática, mas que após deixar o cargo, a política educacional dos governos seguintes fez o ‘favor’ de desativar, como a biblioteca itinerante, que levava livros às localidades mais remotas do país, com ajuda das Forças Armadas, usando inclusive aviões.

Em dado momento, uma afirmativa dele fez com que, em mim, despertasse algo como o ligamento de um interruptor em minha mente: “(...) afinal, nós somos aquilo que lemos”. E mais adiante: “(...) logo procuramos ler aquilo com o que nossa personalidade se identifica”.

Desde então passei a entender que a relação leitor livro é algo mais íntimo do que podemos imaginar. A leitura é a procura por uma formação existencial, podendo-se dizer que passado do começo ao fim de certos livros, tal quais seus personagens, os leitores já não são mais os mesmos. Isto é, a cada leitura significante a que temos acesso, nascemos novamente a partir de uma nova consciência sobre o mundo, sobre os outros, sobre nós. E por isso este direito a renascer deveria ser garantido a todo e qualquer cidadão.

Em outro ponto da entrevista, Affonso deu-me diversos exemplos de ‘efeitos’ que alguns de seus textos já tinham provocado em pessoas (anônimas e famosas) e que a ele confidenciavam mudanças de decisões de vital importância em suas vidas. Casais, por exemplo, que se separaram por causa de uma crônica; outros que se uniram por conta de outra. Um presidente que, salvo engano, renunciou ou pensou em renunciar ao cargo, entre outras coisas do gênero.

‘Leio, logo existo’ poderia ser a reescritura daquele velho silogismo (penso, logo existo), pois ler significa existir. Sim. E não nos limitamos aqui apenas à leitura dos livros, das palavras. Vale também, e principalmente, para o conceito de leitura de mundo de que costumava falar o educador Paulo Freire. Os espaços de sociabilidade, as pessoas, as coisas em geral estão repletas de linguagem que conosco comunica. É a leitura orgânica da vida.

Mas, bom lembrar, no entanto, em vésperas de eleições, que no Brasil ainda se comemora o direito dos analfabetos poderem votar. Estes, porém, não podem se candidatar a nenhum cargo público. Chamam a isso de democracia, acreditem. O certo é que nessas entrelinhas consta escrito: “não lê, logo não existe”.

E viva o país que não lê, viva o país que não existe.

Jornalista

thiago.mercier@yahoo.com.br

thiagomercier.wordpress.com

 

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