O Supremo Tribunal Federal (STF) em sessão dos dias 28 e 29 de abril decidiu que não poderia rever a Lei da Anistia, de 1979. A discussão acontecia em decorrência de ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em que era pedido ao STF que reinterpretasse a anistia de 79, entendendo que ela não se aplicava aos crimes de tortura praticados por agentes do regime de 1964-85 contra os oposicionistas de então.
O Supremo rejeitou a ação da OAB por sete votos contra dois. O ministro Eros Grau, que foi militante de esquerda preso e torturado pela ditadura em 1972, foi o relator do processo, cujo voto foi acompanhado por outros seis ministros.
Uma semana depois do julgamento, a polêmica a respeito da decisão do STF tem sido grande. Basicamente, há dois entendimentos: em um deles, o Supremo teria resolvido ‘deixar quieto’ o assunto, como se nada tivesse acontecido. Se isto for verdade, é curioso o papel do ministro Eros Grau que foi pessoalmente uma das vítimas dos agentes da ditadura. Poderia até ser visto como um gesto de grandeza.
Há quem afirme a importância de se considerar o contexto da época, em que a Lei da Anistia teria sido o melhor que se poderia conseguir, raciocínio que acaba legitimando o ‘deixar quieto’, embora não signifique necessariamente fingir que nada aconteceu. Eros Grau disse em seu voto, citando o poeta uruguaio Mario Benedetti: “Há coisas que não podem ser esquecidas. É necessário não esquecermos para que nunca mais as coisas voltem a ser como no passado” (O Globo, 29 de abril). Ele propõe, então, que os crimes cometidos pela ditadura não sejam esquecidos, embora entenda que a lei que deixou impunes os agentes desses crimes não possa ser revista.
Existe nesse episódio uma polêmica rica. Viver em uma democracia, construir uma democracia, é conviver com a polêmica sem temê-la. Mas há figuras que parecem passar por todas essas questões sem se abalar, sem se tocar por elas. Um exemplo notável desse tipo de personagem é o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), que teve uma enorme capacidade de se adaptar às mais diversas situações. Recentemente, declarou ser contra a criminalização de movimentos sociais. Referia-se aos movimentos de sem-terras e pela reforma agrária, quando provocado pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO), que tentava envolvê-lo em sua campanha intitulada ‘Vamos tirar o Brasil do vermelho – invasão é crime’ (O Globo, 29 de abril).
Sarney iniciou sua carreira política antes de 1964. Fora eleito deputado federal em 1958, reeleito em 1962. Era da UDN, partido político que articulou e apoiou integralmente o golpe de 64, mas – pelo menos até o golpe – dizia-se do que chamava ala bossa nova do partido, que teria simpatias pelo então presidente João Goulart e suas propostas de ‘reformas de base’. Verdadeiras ou não suas inclinações, nada o impediu de buscar o apoio do primeiro presidente do regime do golpe, o marechal Castelo Branco, para superar adversários políticos em seu estado, o Maranhão, elegendo-se governador, em 1965, tornando-se, a partir de então o principal chefe político de lá. Com o reordenamento político feito pelo regime militar, conquistou dois mandatos de senador pela Arena, partido do governo, o primeiro em 1970 e o segundo em 1978. Ou seja, passou pelos piores momentos da ditadura na condição de senador pelo partido da situação, sendo eleito vice-presidente da República pelo Colégio Eleitoral de 1985, na chapa de Tancredo Neves, que marcava o início do fim do regime militar. Foi presidente da Arena e de seu sucessor imediato, o PDS.
Resumindo a história, Sarney se beneficiou do início, do meio e do fim da ditadura. Não foi homem dos porões, onde se praticava a tortura, mas também não se importou muito com ela, ocupado que estava em consolidar sua carreira política. Segundo o senador Pedro Simon (PMDB-RS), “ao longo de 21 anos de regime autoritário, vicejou aqui um sistema repressivo estimado em 24 mil agentes que, devido a razões políticas, prendeu cerca de 50 mil brasileiros e torturou em torno de 20 mil pessoas – uma média de três torturas a cada dia de ditadura” (O Globo, 28 de abril de 2010). Era difícil ignorar tudo isto, principalmente por quem ocupava cargos tão importantes, com acesso a informações escondidas da maioria da população. Era possível ignorar, fingir que não via, ‘deixar quieto’. E este homem, que assim procedeu, tem hoje papel decisivo na política nacional, servindo-se do governo, como sempre fez, em circunstâncias variadas. E a questão é que este notável personagem não é um caso isolado. Traz com ele um modelo de prática política que impregna mesmo aqueles que se opuseram à ditadura e que buscaram utopias. É algo que precisa ser superado.
(*) Jornalista, mestre em sociologia
mauriciosiaines@gmail.com
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