Coisas da vida

segunda-feira, 12 de abril de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Assisti esta semana a uma cena que sugere tantas reflexões quanto os resultados de pesquisas eleitorais neste ano de eleições. Estava tomando café em um bar e, quando fui pagar, o dono do bar não pôde me dar atenção porque estava ocupado com um cidadão que havia se excedido na bebida e começava a ter algumas atitudes inconvenientes. Parece que havia cuspido no chão, não entendi muito bem. Mas era algo no gênero, dessas coisas desagradáveis aos circunstantes que gente de porre costuma fazer.

O cara não parecia um bêbado profissional, mas alguém que, no meio da tarde de um dia de semana, resolveu ‘encher a caveira’. Como fazia calor, o camarada estava de bermudas e uma camisa leve e usava pulseira e medalhão, com correntes grossas, imitando prata.

O dono do bar instruía o empregado a advertir o pinguço e a não lhe dar mais bebida. Foi aí que ele, ofendido, disse aquela frase tão significativa de nossa ordem social: “você sabe com quem está falando?”. Ele enfrentava o empregado do bar afirmando sua ‘superioridade hierárquica‘, em defesa de seu ‘direito’ de incomodar os outros. Depois, começou a fazer um discurso indignado difícil de entender.

Essa historinha seria banal se não representasse algo tão importante na cultura nacional, que tem enorme significado também político, pois aquela frase do bêbado, tão comum na boca de todo tipo de autoridade, contém uma ameaça com base em uma hierarquia. O dono da frase acredita poder causar grandes danos ao seu interlocutor a partir de sua posição social superior.

Quem pode jogar a frase “você sabe com quem está falando?” é aquele indivíduo especial, membro de uma espécie de nobreza intocada pela república, isto é, alguém acima da coisa pública. E esta é exatamente uma mudança de que precisamos quase que desesperadamente. Uma mudança que temos grande dificuldade em realizar que é a de estabelecer a distinção clara entre o que é público e o que é privado.

As práticas de algumas famílias célebres de políticos evidenciam esse vício, que não é de hoje. O pensador Sérgio Buarque de Holanda diz que temos a inclinação a tentar dar um caráter familiar a todas as relações, mesmo àquelas que se desenvolvem dentro da administração pública. Isto que acaba legitimando os diversos tipos de falcatruas que tanto assolaram o noticiário muito recentemente. Arranjar emprego para o namorado de uma neta na máquina do Poder Legislativo ou impedir a divulgação de notícias a respeito de negócios discutíveis de um filho são coisas tidas quase como naturais. O Estado, o espaço público de um modo geral, torna-se assim, um prolongamento dos domínios da família, uma espécie de fundo de quintal.

Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil, publicado pela primeira vez em 1936, diz ainda o seguinte: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. (Raízes do Brasil, 2003, São Paulo, Companhia das Letras, p. 141).

Este é um dos grandes desafios que enfrentamos, tornar a coisa pública realmente pública e não uma extensão de domínios privados. É difícil porque temos a grande tradição da sociedade desigual, construída a partir da escravidão e cheia de hierarquias, aquelas que permitem o uso daquela horrível expressão: “você sabe com quem está falando?”.

Agora, fica a pergunta: como saber qual candidatura pode representar essa ruptura com as antigas práticas? O PT, do presidente Lula e da ex-ministra Dilma, e o PSDB, do ex-governador José Serra e do ex-presidente Fernando Henrique, foram forças inovadoras, mas tantas e tão estranhas foram as alianças políticas que fizeram que se tornou difícil reconhecê-los. As outras forças políticas não só não parecem se configurar como alternativas reais, como também não parecem significar qualquer possibilidade de realizarem aquela ruptura com as relações familiares a que se refere Sérgio Buarque, como opostas ao público, à coisa pública.

E alianças com aquelas forças políticas do passado, com os coronéis que vêm atravessando diferentes momentos do país, sempre conseguindo, não exatamente se adaptar, mas valer-se das novas condições que encontram para manter seus privilégios de sempre. As mudanças acontecem mas a estrutura social de poder permanece.

(*) Jornalista, mestre em sociologia

mauriciosiaines@gmail.com

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade