Colunas
Irmãos de estrada
Entrar no carro e pegar a estrada. Com rumo ou sem rumo, para perto ou para longe, de dia ou de noite, sozinho, entre amigos ou em família. Em comboio, talvez. Ir de um ponto a outro. Apenas sair e chegar, ou algo a mais?
No sentido oposto, outros carros, motos, vans, ônibus, caminhoneiros e suas cargas, algumas delas vivas. Vultos, faróis, deslocamento de ar, ausência. Passamos por eles como flashes, e exercemos sobre eles a mesma impressão. Efêmera. Um minuto depois, se tudo der certo, já estaremos a três quilômetros de distância, e talvez jamais voltemos a cruzar os caminhos um do outro. Dividimos o espaço como quem passa por desconhecidos ao cruzar as desconfortáveis áreas livres de um grande condomínio, tantas vezes lamentando não ter meios para evitar tal forma de convívio forçado. Porém, com uma diferença fundamental: estamos indo rápido, e todos portamos armas carregadas.
Alguém já parou para pensar em quantas pessoas atravessam nosso caminho nessas viagens? Duzentas? Mil? Cinco mil? Dez mil? Gente em todas as fases da vida. Ainda na barriga da mãe, na primeira infância, curtindo os primeiros espasmos de consciência, descobrindo o mundo, fazendo perguntas. Em viagens escolares, ou fazendo a primeira viagem sem os pais. Estudando fora, indo trabalhar. Muitos com saudade, outros com medo. Lua de mel, talvez? Ou a primeira e dolorosa viagem após uma separação, a perda de alguém querido. Tratamento de saúde? Sim, muitos. Para alguns, inclusive, talvez seja a última viagem. Passamos, sem perceber, por pessoas que conhecemos, ou outras que são famosas. Uns altruístas, outros egoístas, certamente alguns criminosos também. Uns transportam filhos, outros armas. Quem os aguardará em seus destinos? Quantas destas pessoas estão fazendo aniversário hoje?
A visão periférica também registra casas, igualmente periféricas. Vendedores, andarilhos, crianças crescendo às margens, em meio a uma paisagem assombrada por borrões, roncos, pressa e indiferença. Quem é que se move, o carro que passa, ou elas que ficam?
E se não chegamos a pensar em nada disso, quem então haverá de refletir sobre o fato de que aquilo que para nós é apenas caminho, para outros seres vivos é habitat dividido, é incompreensível, é um desafio novo para o qual ainda não há instintos, é morte, dor e solidão? Investir um pouco que seja para preservar essas vidas, quando já temos tantos problemas? Não, obrigado. Mas, claro, para a corrupção não pode faltar, não é?
Pelo segundo ano consecutivo A VOZ DA SERRA dedica um Caderno Z ao tema gentileza. Não há redundância nisso, e nem pode haver. Gentileza nunca será excessiva. De forma especial no trânsito, onde tanta dor poderia ser evitada, mas não apenas nele, essa virtude que adiciona doses de doçura e sabedoria ao imprescindível respeito, se mostra cada vez mais necessária.
Porque não basta a compreensão de que todos temos o direito à vida, e o dever de preservá-la e protegê-la. É preciso também preservar o seu sabor, sua leveza, o ambiente adequado para que frutifique e encontre seu sentido.
Márcio Madeira da Cunha
Sobre Rodas
O versátil jornalista Márcio Madeira, especialista em automobilismo, assina a coluna semanal com as melhores dicas e insights do mundo sobre as rodas
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