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Viajantes: cotidiano e história—Parte 3: Bacalhau na barriga e nas costas
quinta-feira, 07 de março de 2013
Parte III
Bacalhau na
barriga e nas costas
Cantagalo sempre foi conhecida como uma localidade onde se praticava as piores sevícias contra os escravos, dando um tratamento tão cruel aos cativos que ganhou notoriedade no país. No entanto, depois da proibição do tráfico de escravos, os fazendeiros passaram a tratar melhor os seus cativos, não por razões humanitárias, mas por questão econômica. Enfermarias foram introduzidas nas fazendas para tratamento dos escravos doentes, prática essa inexistente antes da referida lei. Em razão disso, Tschudi relata a melhoria do tratamento dado aos cativos nos últimos anos: “O tratamento dos escravos é, segundo testemunho de pessoas competentes, muito bom no distrito de Cantagalo, tendo ainda apreciavelmente melhorado nesses últimos 15 ou 20 anos. As vantagens pecuniárias impeliram os donos de escravos a cuidar do bem-estar dos mesmos, pois a capacidade de trabalho de cada um representava um capital para o dono e, assim, apresenta-se-nos o caso bastante raro dos sentimentos de humanidade marcharem de acordo com os interesses particulares e financeiros. Mas não é apenas o interesse monetário que o fazendeiro tem no seu escravo que o induz a tratá-lo bem, concorre a concepção adiantada e mais livre das gerações novas. Tanto nesse distrito como em todo Brasil, existem uns raros fazendeiros que maltratam os escravos, deixando-os quase morrer de fome. Desses, a maioria são portugueses. É fato conhecido que os brasileiros são infinitamente mais humanos e bons para com os seus escravos do que os portugueses, que os maltratam, sendo ainda os homens sempre mais cruéis do que as mulheres.”
Descreve as condições dos escravos nas senzalas no qual os homens são alojados separadamente das mulheres. Nas senzalas, além das tarimbas onde dormiam, existiam fogões nos quais os escravos preparavam uma refeição ao retornarem do trabalho, como peixe ou alguma caça do mato, a exemplo de tatus, iguanas, pacas, capivaras ou cotias. Segundo Tschudi, os escravos gostavam de reunir-se ao cair da noite ao redor do fogo, fumando, palestrando e gesticulando, em grande algazarra: “As senzalas ficam abertas até às 10 horas da noite, havendo até lá, um convívio misto nas mesmas. A um sinal dado por uma campainha, os homens e as mulheres se retiram, cada qual para a sua habitação e o guarda os fecha a chave, abrindo-as na manhã seguinte, uma hora antes de iniciar-se a tarefa diária. As crianças menores dormem com as mães, as maiores possuem suas tarimbas individuais, dormindo em geral duas crianças em cada uma. Os negros casados vivem em recintos menores devidamente separados. É muito raro haver entre os negros casamentos celebrados na igreja, mas o fazendeiro permite que os pares, que se unem segundo oportunidade ou sorte, vivam juntos, sendo que o pronunciamento do fazendeiro basta para que eles se considerem como esposo e esposa, numa união que raras vezes há de perdurar a vida inteira. As pretas possuem, em geral, filhos de dois ou três homens diferentes. Mesmo esta formalidade não se observa no mais das vezes, e os negros vivem em promiscuidade sexual, como o gado nos pampas. Um fazendeiro experimentado me afiançou que com a criação natural conseguem geralmente rebentos fortes e saudáveis. Os filhos dos escravos são batizados no rito católico. Mas mesmo nesse pormenor não existe muito escrúpulo satisfazendo-se o fazendeiro em dar um nome qualquer à criança recém-nascida. O enterro deve fazer-se em terra benta, mas também tal prescrição não se observa a rigor, e um negro morto em consequência de maus-tratos é simplesmente enterrado num canto qualquer da fazenda.”
Com relação aos trajes dos escravos, observou que os homens usavam calça e camisa, as mulheres camisa e saia, tudo feito de algodão grosso e resistente, de fabricação nacional. Uma baieta de lã com forro de algodão, um chapéu de palha ou um barrete completam a indumentária. Nas fazendas que primam pelo bom tratamento dispensado aos negros, eles recebem 3 camisas, 3 pares de calças e os respectivos casacos, um chapéu, um pano que geralmente é enrolado na cabeça e dois cobertores por ano. Já as mucamas recebiam roupas mais finas: “O dinheiro que os escravos conseguem com pequenos serviços avulsos é geralmente gasto na aquisição de bugigangas, uma ou outra peça de roupa, fumo, doces e se a ocasião se oferece, na compra clandestina de cachaça.”
O alimento dos escravos compunha-se principalmente de angu, feito com farinha de milho e água, feijão preto e carne-seca: “A quantidade distribuía entre os escravos varia em cada fazenda, numas a distribuição é farta, mas outras quase não dá para matar a fome dos pobres desgraçados.” Nos dias de abstinência, a carne era substituída por bacalhau ou outro peixe salgado. Em muitas fazendas dá-se peixe seco em vez de carne: “Penso que nem na metade das fazendas existentes os escravos recebem comida tão boa e abundante. Há fazendeiros ricos que por mera avareza e desconhecendo os próprios interesses vitais economizam na alimentação dos escravos, dando-lhes comida insuficiente e rações diminutas. Os fazendeiros pobres, entretanto, não podem alimentar bem os seus escravos. Em certas fazendas os escravos recebem mais bacalhau nas costas do que barriga.” O bacalhau nas costas a que se refere Tschudi era o chicote, conhecido vulgarmente como bacalhau: “Quando um escravo se torna reincidente nas faltas e nem observações, nem reprimendas o corrigem, usam castigá-lo com palmatória na palma das mãos. Por faltas mais graves, recebe chibatadas nas costas ou no traseiro. Em muitas fazendas, não é permitido ao feitor castigar ao escravo com mais de três chibatadas durante o dia, pois o verdadeiro castigo é ditado pelo fazendeiro, quando os escravos se reúnem à noite no pátio.”
Os feitores, observou, eram na maioria homens negros ou mulatos e muito mais cruéis para com os escravos do que seus próprios amos e costumavam castigá-los durante as horas de trabalho a seu bel-prazer, sem conhecimento do senhor: “A lei limita o número de chibatadas a 50 [no caso, diárias], mas os fazendeiros pouco se importam com isto e costumam fazer dos seus escravos o que bem lhes parece, pois o consideram propriedade absoluta. Um dos castigos mais cruéis é o tronco, duas tábuas ligadas entre si por dobradiças, tendo os orifícios necessários para prenderem o culpado pelos tornozelos ou os braços, ou o pescoço, que fica assim preso, deitado no chão. Prisões em celas isoladas e escuras, agravadas com jejum, castigos durante os quais ficam as vítimas acorrentadas—modalidades extremamente refinadas da arte de torturar—são aplicadas nos casos de delitos mais graves. Os escravos fugitivos são, quando novamente os capturam, submetidos a graves suplícios. Nos casos de reincidência, os castigos excedem em muito qualquer princípio de humanidade. Mesmo nos casos de crimes graves cometidos por escravos, os amos costumam exercer privativamente a justiça, pois se entregasse o criminoso à justiça pública e fosse ele condenado à morte ou a pena longa, o fazendeiro, além de perder o escravo, ficaria ainda sujeito a despesas e outros incômodos.” Destacou que índice de mortalidade entre os “negrinhos” nascidos nas fazendas era elevado principalmente devido à deficiência na alimentação. A fase perigosa começava quando a criança era desmamada e iniciava a alimentação comum. As próprias mães não se importavam com a vida dos filhos, observou Tschudi. Continua na próxima semana com a matéria “O salubre e delicioso vale”.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora do livro “Histórias da História de Nova Friburgo”. historianovafriburgo@gmail.com
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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