Colunas
Um olhar sobre a escravidão
quinta-feira, 25 de abril de 2013
Josehph Hecht, colono suíço, chegou ao Brasil em 15 de dezembro de 1819, para se estabelecer na colônia de suíços, na Fazenda do Morro Queimado, que passaria a denominar-se Nova Friburgo. Hecht ficou apenas quatro anos em Nova Friburgo e retornou à Suíça desapontado com a infraestrutura da colônia oferecida aos suíços: terras inférteis à agricultura, entre outras promessas não cumpridas. A perda de seu filho mais novo abate-lhe ainda mais o ânimo em permanecer no Brasil. Antes de retornar ao seu torrão natal, trabalha por um período no Rio de Janeiro no seu ofício de alfaiate e nos oferece um interessante relato sobre o cotidiano dos escravos na capital reino. Percorrendo as ruas do Rio de Janeiro, Hecht parou diante de um pelouro e ficou curioso com a coluna de pedra com argolas de ferro presas na superior e inferior. Perguntou a um transeunte para o que servia e esse respondeu ser o local onde batiam nos negros [escravos] que roubavam ou que fugiam pela terceira vez de seus proprietários. Havia sangue por toda parte. Como a escravidão lhe despertara a curiosidade, dirigiu-se ao mercado de escravos, observando os armazéns depósitos de cativos. Descreveu que os viu deitados sobre um chão de madeira, “nus como tinham vindo ao mundo”. Para alimentá-los, observou, traziam-lhes ervilhas ou feijão cozido com fatias de carne seca, farinha de mandioca e água. Para cada dez escravos havia uma vasilha cheia de açúcar que se serviam em cuias de madeira. Não havendo garfos, colheres ou facas para comer, sentavam-se no chão, preparavam pelotas com a comida e numa manobra rápida jogavam as pelotas na boca sem errar o alvo. Após a refeição, aproximou-se o comandante e todos se levantaram fazendo movimentos numa espécie de dança. O objetivo era mantê-los saudáveis e sem câimbras. Quando se aproximou um comprador, formaram uma fileira em pé, ficaram com as cabeças erguidas, como soldados, e o comprador os inspecionava verificando se eram realmente fortes e saudáveis. O vendedor destacava os mais fortes, batia em seus peitos, exibindo as qualidades tanto dos homens quanto das mulheres, e a negociação se iniciava. A cada oito dias chegava ao porto do Rio de Janeiro um navio negreiro trazendo nos porões cerca de 600 escravos. Hecht escreveu: “Olhar duma só vez tantas infelizes vítimas era coisa que quase rasgava o coração de um cristão.”
Hecht referiu-se ao “matadouro” como um local de duros e terríveis castigos para punir os escravos que roubavam seus donos ou que fugiam pela terceira vez. Possivelmente estivesse se referindo ao “aljube”, uma prisão do governo que, na realidade, servia mais aos senhores de escravos do que ao sistema judiciário propriamente dito. O escravo era tratado conforme a vontade de seu dono: se o proprietário ordenasse que o escravo recebesse 50 ou 100 chibatadas diárias durante um mês inteiro, assim se fazia. Alguns preferiam chicotear o escravo no pelourinho até a morte, para que servisse de exemplo. Hecht assistiu a um desses “espetáculos” de escravos sendo chicoteados no pelourinho. Descreveu que das costas até as coxas o escravo era como uma ferida aberta, cheia de farrapos de carne cortada. O corpo estava bem inchado. Após a agonia dos açoites com tiras e cordas de couro, outro instrumento de tortura: um pedaço de madeira cheia de espinhos, preso a outro pedaço de meio metro de comprimento. A madeira espinhenta rasgava fundo o corpo do desgraçado, quase arrancando pedaços de carne. Hecht, diante de tal cena, observou: “Eu julgava impossível imaginar que alguém fosse capaz de bater e torturar um semelhante de modo tão terrível. Mas no Rio de Janeiro era-se acostumado, desde criança, a essas cenas sangrentas e esse costume pouco a pouco embotava totalmente os melhores sentimentos de compaixão.”
Hecht destacou que os cariocas não trabalhavam, pois tudo era feito pelos escravos: “Para o branco, é uma afronta ou um ultraje andar carregando alguma coisa.” Com relação aos negros de ganho, escreveu: “Todo negro que tem uma profissão deve trazer ao seu dono, no fim do dia, uma certa quantia em dinheiro. Se ele não trouxer aquilo que o dono exige e quanto realmente conseguiu ganhar, receberá pancadas. Aquilo que exceder ao que se exige é dele.” Quando chega o fim do dia, depois que os negros de ganho entregavam o dinheiro aos seus senhores, iam para o botequim beber cachaça. Em noites de luar (pois a iluminação era precária), esses escravos urbanos se reuniam e punham-se a dançar logo que um deles iniciava uma cantoria “resmunguenta”, ao som de um instrumento miserável. Causou-lhe estranheza que não houvesse negras entre eles. Por fim, destacou que circulavam seminus pela cidade.
Hecht é um testemunho do impacto provocado aos suíços nos primeiros contatos com o cotidiano da escravidão. De início, a indignação e o constrangimento. No entanto, decorridos alguns poucos anos, colonos suíços e alemães, já habituados à cultura local, adquiriram escravos. Talvez Hecht se indignasse com a correspondência trocada entre os seus conterrâneos: “Apesar deste preço, os negros são mais baratos que os outros empregados (...)os senhores Mandrot, de Morges, Graf-fenried, Schmid e Morell, de Berne, se encontram aqui, e se propõem adotar a cultura; eles compraram para este efeito negros, que os custou mais ou menos 1200 fr. a peça.”
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no facebook a página “História de Nova Friburgo”.
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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