“Trabalho de preto”

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Transcorridos mais de três séculos de escravidão no Brasil, o trabalho na lavoura, assim como outras atividades laborais, estava associado ao trabalho escravo. O homem livre e pobre, ainda que em estado de miserabilidade, não realizava determinados trabalhos por serem tarefas executadas por escravos. No inconsciente coletivo, homem branco não realizava trabalho de "preto”. Em princípios do século XIX, a Coroa Portuguesa inicia o estabelecimento de colônias pelo Brasil, sendo Nova Friburgo a timoneira entre elas. Já havia uma pressão inglesa pelo fim da escravidão no Brasil e urgia uma política pública que procurasse substituir o trabalho escravo. A falta de braços na lavoura, principal atividade econômica do país, seria um verdadeiro fantasma para os latifundiários oitocentistas, mormente quando o plantio do café se tornava uma atividade lucrativa. Logo, D. João VI inicia o estabelecimento das primeiras colônias no país, com colonos europeus. O sistema de colonato que foi estabelecido em Nova Friburgo nos parece ter sido feito para servir, além de uma colonização de povoamento, como exemplo de nova organização do trabalho na lavoura, executado por braços livres. Como mudar essa mentalidade? Como educar o trabalhador livre de que o trabalho em certas atividades não era trabalho de "preto”, mas igualmente de homem livre? Como acabar com o estigma negativo do trabalho?

Vamos analisar o discurso do desembargador Henrique Veloso de Oliveira, no artigo "A substituição do trabalho dos escravos pelo trabalho livre no Brasil”, publicado por Perdigão Malheiros, no terceiro quartel do século XIX, em "A Escravidão no Brasil”. Oliveira coloca uma interessante questão: enquanto o trabalho escravo não fosse escasso, não haveria espaço para o trabalho livre. Em meados do século XIX, quando o tráfico de escravos foi finalmente abolido, o preço da "peça” disparou. Um espaço para o colono livre? Não. O tráfico interno, deslocando escravos das decadentes lavouras de cana-de-açúcar do nordeste para as lavouras de café do sudeste, fez com o preço do cativo se tornasse novamente viável. 

Quando a colônia de Nova Friburgo foi estabelecida, na segunda década daquele século, o preço do cativo era barato. Até mesmo as camadas populares possuíam escravos, fenômeno denominado de "escravidão miúda”. Logo, pode-se afirmar que os fazendeiros da região de Cantagalo, não teriam tido interesse nesses colonos suíços. De qualquer maneira, não convinha, segundo Oliveira, a mistura de livres e escravos na mesma propriedade, fato esse que ficaria comprovado décadas depois, nas lavouras cafeeiras paulistas. Porém, os suíços vieram não para servir à esses fazendeiros, mas para ser um contraponto à escravidão: trabalho executado por homens livres e brancos, em pequenas glebas de terras e voltado para a lavoura branca, na produção de alimentos. Oliveira indaga: "Quantos homens desempregados se não iriam acostumando pouco a pouco ao trabalho e viriam a adquirir uma moralidade que hoje não conhecem?”(grifos meu). A imoralidade a que se refere é o fato do trabalho ser executado por escravos, logo, imoral se executado pelo homem livre. É interessante imaginar o impacto que teria provocado nos fazendeiros da recém-criada Nova Friburgo (1820) quando viram homens brancos executando o trabalho na lavoura. Acostumados a ver negros cativos em tais atividades, pode ter parecido bizarro ver esses novos protagonistas executando "trabalho de preto”. Oliveira afirma: "Se a agricultura não tem tantos sectários livres como os outros empregos, é porque a fazem exclusiva dos escravos”. 

De acordo com o discurso de Oliveira, não deveria ser permitido escravos nos territórios das colônias. Uma crítica provavelmente baseada na experiência de Nova Friburgo. Igualmente, não faltaram projetos de lei proibindo que estrangeiros adquirissem escravos no Brasil, mas nenhum deles foi aprovado, ficando na retórica. Apenas para ficar em um exemplo, vejamos o projeto do senador Silveira da Mota (1865). No artigo primeiro, proibia-se aos estrangeiros residentes no Império a aquisição e posse de escravos. Os estrangeiros que os possuíssem seriam obrigados a dispor deles no prazo de dois anos, sob pena de serem declarados livres. Mais uma lei tendo como referência a colônia de Nova Friburgo? Os colonos suíços e alemães, assim que a situação financeira lhes permitiu, adquiriram escravos. 

O preconceito dos mestiços, mulatos, mamelucos e cafuzos contra o trabalho rural, o trabalho enxadeiro das roças, o trabalho servil, tarefa dos africanos escravos, não tem outra origem. O nivelamento com o escravo, sob o chicote dos feitores, dói-lhes como em ferro em brasa. Até mesmo ex-escravos, uma vez forros, não querem trabalhar nem servir. Uma ascensão social ilusória, pois o mestiço e o ex-escravo serão considerados um desclassificado permanente pela elite branca. Como o mestiço evitava ser nivelado com os escravos e era repelido pela elite branca, a sua situação social é indefinida. Logo, o trabalho rural, base da economia no período colonial e imperial, associado à condição servil, torna-se repulsivo ao homem livre. Até mesmo os colonos brancos e reinóis, que no Brasil aportam, ainda que criados com a enxada na mão, se deixam logo tomar pela repulsa ao trabalho. Trabalho de preto? Não, ninguém queria.

 

Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”

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História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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