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Terra de índios brabos
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Uma das fontes para a reconstituição histórica da presença indígena em Nova Friburgo e no Centro-norte fluminense se faz através de impressões de pessoas que com eles tiveram algum contato, ainda que efêmero. A região fluminense do médio Paraíba era conhecida como Sertões do Macacu, no qual pertencia Nova Friburgo. Há registro da presença das tribos Coroados, Puris e Coropós. As denominações Macuco e Itaocara são referências da presença indígena nessa região. O colono suíço Joseph Hecht assim escreveu, no início do século XIX: "Nós, os colonos suíços, vimos muitos índios (...) Os índios totalmente selvagens logo empreendiam a fuga, inteiramente nus; os meios mansos ficam parados timidamente à nossa vista e se escondem atrás das árvores, enquanto as mulheres, cobertas com uma tanga, sentam-se rapidamente no chão, como para esconder a sua vergonha. Os homens, ao contrário, armados de arcos, nos espreitavam por detrás das árvores, com olhos muito atentos.” Numa excursão nos arredores de Cantagalo, em princípios do século XIX, antes da sua visita a uma provável mina de prata, o mineralogista inglês John Mawe teve contado com alguns índios da região. Passou por vários grupos de aborígines avistando suas cabanas e aldeias. De acordo com a sua descrição habitavam as florestas, em condições miseráveis: suas casas eram construídas com ramos de árvores, teto de folhas de palmeira e leitos de capim seco. Mawe, desconhecendo a cultura do índio, registrou que possuíam pouco conhecimento da lavoura e se alimentavam da coleta de raízes e frutos selvagens nas florestas. Destaca a grande aversão dos índios ao trabalho e que não se conseguia submetê-los a um emprego regular. Na realidade, o índio não se dedicou a lavoura porque somente retira da natureza aquilo que consome, não se preocupando com o excedente. Daí a coleta ser uma característica de sua cultura. Raramente se encontrava um índio servindo como criado ou trabalhando como camarada. Os fazendeiros que não podiam adquirir escravos sucumbiam por falta de braços na lavoura, já que a escravização do índio era praticamente impossível.
Os homens vestiam colete e calças e as mulheres camisa e saia, com um lenço amarrado em volta da cabeça, à moda portuguesa. Alguns falavam algumas palavras em português. Mawe os descreveu com a pele bronzeada, atarracados, rosto redondo, nariz chato, cabelo negro e liso, baixos e musculosos. Já Hecht, com a pele amarela escura, longos cabelos negros, sobrancelhas grossas, olhos negros penetrantes, boca grande, imensas narinas, pescoço curto e grosso, estatura baixa e corpulentos. Mawe, desejoso de assistir a uma prova de sua perícia na pontaria, colocou uma laranja a trinta jardas de distância, que foi atingida por todo o gentio que desfechou o seu arco contra ela. Com a mesma precisão atingiram uma bananeira a quarenta jardas de distância e igualmente com certeira pontaria abatiam a caça. O silêncio e a rapidez com que penetravam nas moitas e atravessavam o mato o surpreendeu. Hecht também os descreveu como muito certeiros com suas flechas envenenadas, extraordinariamente fortes e muito ágeis na corrida. Eram hábeis como peixes quando nadavam nos rios. Mawe achou seus hábitos asquerosos, estando apenas a um passo acima da antropofagia. Observou que devoravam os animais semicrus, ainda com entranhas. Hecht cita que algumas tribos eram antropófagas, a exemplo dos Caraíbas.
Mawe, presenteando-os com garrafas de aguardente, provocou uma briga geral entre eles. Observou que era muito perigoso fornecer-lhes bebidas, pois, quando embriagados, era necessário prendê-los: "Dando-se preferência a um, os demais se tornam insolentes e desenfreados, até que obtenham o mesmo favor”. Hecht registrou que comiam miolo de fruta-pão, que socam, secam, misturam com milho e assam no fogo. Achou saborosa a refeição. Um fato curioso que nos revela é que de vez em quando os índios faziam investidas e roubavam objetos nas fazendas da localidade. Nessa ocasião, tinham por costume matar os escravos, por achá-los criaturas diabólicas, em razão de sua cor negra como "carvão”. Os escravos fugiam apavorados dos índios, pois sabiam de sua aversão e espírito belicoso em relação a eles. A extinção do gentio dessas plagas não difere muito do contexto nacional — o homem branco, europeu, dizima a população indígena, já que não conseguem escravizá-los. Os índios dos Sertões do Macacu ficaram livres da presença do homem branco até o terceiro quartel do século XVIII, graças à política do Reino que impedia o acesso a essa região, tentando evitar a evasão clandestina do ouro extraído em Minas Gerais. Um alvará de 23 de outubro de 1733 cominava pena aos que ousassem penetrar nas "Arias Prohibidas”, constituídas pelos Sertões do Macacu. Mas desde que o contrabandista Mão de Luva furou o bloqueio e ocupou a região, atraiu com a descoberta do ouro a administração da Coroa e consequentemente toda a região foi objeto de distribuição de sesmarias para exploração desse metal. Antes de Mão de Luva, o mapa geográfico da época advertia: terra de índios brabos.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos
livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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