Presença árabe em Cantagalo

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O que vieram fazer os árabes em Cantagalo em fins do século 19? No momento em que eles chegaram a esse município a lavoura cafeeira apresentava declínio em razão do fim da escravidão, provocando a falta de braços nas fazendas e igualmente devido ao desgaste das terras pela ausência de adubagem. Alguns fazendeiros dessa região já vinham estimulando a vinda de colonos portugueses e italianos. Cantagalo fora um município que ganhara imensa notoriedade nacional devido a sua grandiosa produção de café gerando uma nobreza da terra. Em razão disso, o município ainda exercia forte atração aos imigrantes. Nessa ocasião, Cantagalo estava sendo desmembrada para formar diversos municípios, mas esses limites geográficos ainda levariam algum tempo para serem absorvidos pela população. Vieram em sua maioria sírios, libaneses e alguns palestinos, mas o vulgo somente os chamava de turcos. Uma confusão que não apreciavam, pois eram árabes e não turcos. A situação se agravava por serem os turcos históricos opressores dos árabes. Durante séculos (de 1299 a 1922), o Oriente Médio, a Europa Oriental e o norte da África foi dominado pelo Império Turco-Otomano. Daí a confusão dos árabes serem chamados de turcos, pois pertenciam aos domínios desse império. Até a Primeira Guerra Mundial (1914-18) os passaportes de toda essa região eram expedidos pelo Império Turco-Otomano. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, esse império se desfez, dividindo-se em 40 países formando a Síria, o Líbano, a Palestina, a Jordânia, entre outros. Quando chegamos a uma residência de descendentes de árabes a primeira coisa que sentimos é a sua hospitalidade através da comida. É ofensa não comer... e muito. Mesmo depois de satisfeitos vem sempre aquela famosa frase: “Come mais, você comeu pouco” e enquanto falam enchem novamente os nossos pratos. A família árabe recebe dessa forma: mesa farta com quibe, babaganouche, pão sírio, merche e kanafeh. Essa é a maneira árabe de receber. Nas paredes, os retratos da família e artefatos orientais espalhados pela casa, lembrança eterna de sua origem.

Devemos ao árabe a introdução da cana-de-açúcar na Europa e daí a popularização dos doces em Portugal. O moinho d’água e a cana-de-açúcar são heranças árabes, base da economia do Brasil colonial. Fui até a residência de Ruth Farah Nacif Lutterbach, que reuniu uma parte dos parentes para nos contar um pouco a respeito da imigração árabe no município de Cantagalo. A clássica data da chegada dos árabes ao Brasil colocado pelos historiadores é a partir de fins do século 19. No entanto, a sua cultura chegou bem antes. Os portugueses colonizadores trouxeram ao Brasil Colônia a cultura árabe no qual estavam totalmente impregnados — depois de séculos de ocupação dos árabes em Portugal durante a Idade Média, o português trouxe em sua bagagem toda a tradição que recebeu desse povo: o moinho, a cana, os azulejos, a arquitetura moura, a doceria, o vocabulário, a treliça, as fontes e alguns aspectos do comportamento, como esconder as mulheres da família da vista dos estranhos. Depois de vencidas as dificuldades da primeira geração, buscaram para os seus filhos a ascensão socioeconômica via educação. A maioria dos filhos desses pioneiros se formou em médico seguido pela escolha da carreira jurídica. Outra característica dos árabes, ainda hoje presente no Oriente Médio, são os casamentos interfamiliares, notadamente entre primos, previamente arranjado entre os familiares. Imaginar que todo árabe é muçulmano é um equívoco. Até meados do século 20, a imigração de árabes foi predominantemente cristã: maronitas, melquitas, ortodoxos do rito antioquino, siríacos e católicos romanos. A maioria dos libaneses era maronita, enquanto os sírios costumavam ser ortodoxos. A vinda de árabes para o Brasil entrou em declínio a partir da década de 40, do século 20. O governo brasileiro impôs medidas restritivas a essa imigração. No entanto, com a guerra civil libanesa, a ocupação israelense dos territórios palestinos e do sul do Líbano, novos imigrantes árabes vieram ao Brasil, a partir dos anos 70 do século 20. Porém, dessa vez, a maioria constituída de muçulmanos. O número de mesquitas existentes atualmente no Brasil reflete bem a diferança dessas duas levas migratórias. Diferentemente de outros imigrantes da época, não imigraram para trabalhar nas lavouras de café, e sim como mascates, ou seja, vendedores ambulantes. O mascate árabe e o turco da lojinha povoaram a literatura nacional durante todo o século vinte.  Em Cantagalo, por herança atávica não se dedicaram à agricultura, com raras exceções, abrindo estabelecimentos comerciais depois de trabalharem como mascates. Imigraram em número significativo para esse município as famílias Farah, Nacif, Abrahão, Mansur, Richa, Daher, Fadel, Abi Ramia, Habib, Zarif, Elias, Miguel, Nara, Adib e Yunes. Sírios, libaneses ou palestinos, no Brasil foram chamados de turcos. Mas sua presença não nos causou nenhum estranhamento. O colonizador português já nos havia introduzido séculos antes a cultura moura que absorvera durante séculos de ocupação árabe na península ibérica.

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    Casamento de árabes que imigraram para Cantagalo (Cortesia Janaína Botelho)

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    Casamentos entre primos ainda é muito comum entre os árabes até os dias atuais (Cortesia Janaína Botelho)

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    Documento em francês pois o Líbano e a Síria ficaram sob o protetorado da França com o fim do Império Otomano (Cortesia Janaína Botelho)

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    Elias Hanna entre os parentes em seu comércio em Cantagalo (Cortesia Janaína Botelho)

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    Família de descendentes árabes de Cantagalo (Cortesia Janaína Botelho)

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    Imigrante árabe, sempre confundidos com turcos devido ao Império Turco-Otomano (Cortesia Janaína Botelho)

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    Passaporte de imigrante árabe (Cortesia Janaína Botelho)

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Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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