Poemas, lenços e cartões-postais

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Na década de 40 do século XX, Nova Friburgo era uma cidade que começava a apresentar uma configuração urbana, mormente pelas indústrias que se estabeleceram na cidade a partir de 1911. No entanto, nos seus arredores mais distantes, figurava uma paisagem rural. Avistavam-se roças de milho, mandioca e inhame, bromélias, pacas e tatus. O trem que saía do Rio de Janeiro de madrugada passava pelas estações de Niterói, Visconde de Itaboraí, Santana de Japuíba, Cachoeiras de Macacu, Mury, centro de Nova Friburgo, Bom Jardim, Monnerat, Sumidouro, Bela Joana, Barra de São Francisco e Bacelar Porto Novo do Cunha, em Minas Gerais. Na memória, o apito do trem por volta das 21 horas, na Ponte Preta, parecendo um dragão, expelindo fumaça, soltando faíscas, badalando. Da janela da Maria Fumaça, o sorriso alegre do maquinista anunciando a entrada no bairro Vilage. Todos sabiam ser hora de dormir. 

O trem era o meio de transporte das professoras que trabalhavam em escolas na zona rural. Como a locomotiva precisava ser reabastecida, parava-se muitas vezes para recolher carvão e lenha durante a viagem. Algumas vezes o maquinista pedia ajuda aos passageiros para reabastecer a fornalha com lenha que havia à beira da estrada. Viagem longa e a fome batia no adiantado da hora. Cada um dava o que tinha para refeição comunal: ovos, carne, linguiça, farinha. Em algumas escolas rurais na década 40, as professoras iam a pé, a cavalo, em lombo de burro ou égua e, às vezes, em carros de boi ou em caminhões velhos que transportavam leite. Estradas esburacadas, quase intransitáveis, muitas vezes bloqueadas por barreiras nos tempos de chuva. E os pais dos alunos, sempre prontos a socorrer as professoras nessas horas difíceis. Nas fazendas ao redor, capões de mato, lavouras de milho e feijão. O café não existia mais. Em seu lugar, formigueiros e pastos cheios de cupim. Na paisagem rural, burros levando latões de leite para a estação de trem e o cantar dos carros de boi recolhendo lenha nos morros para alimentar a fornalha da Maria Fumaça. Alguns vilarejos possuíam apenas uma dezena de casas, uma venda, a escola, a igreja e o rio preguiçoso. Os latifúndios isolavam as pessoas. A sociabilidade do vilarejo era restrita às festas religiosas e às missas. 

Nas escolas, muitos alunos entravam apenas para poder contar e dizia a mãe: "Ele mexe com bois, vende, compra, é bom de cabeça, mas tropeça no papel”. A maioria das crianças caminhava mais de uma hora para chegar à escola. Alguns dormiam durante a aula. As professoras pediam leite aos fazendeiros para a merenda escolar. Nenhum deles negava, podiam tirar o que quisessem. Faziam horta plantando cenoura, couve e alface no quintal da escola. Certa feita, quando plantavam milho, colocando apenas um grão em cada cova, um aluno com olhar zombeteiro falou: "Professora, assim o milho não vai nascê. Plantando um grão em cada cova num tem colheita. Tem que botá três grão: um vai gorá, um vai brotá e o outro é pro passarim”. Era um tempo em que as professoras educavam e serviam. Aos sábados e domingos, visitavam os doentes, as pessoas solitárias, aplicavam injeções, faziam curativos e até mesmo parto. Era oferecido às professoras café com melado. Os coronéis da extinta Velha República ainda mandavam em seus currais eleitorais. Muitas escolas eram estabelecidas em suas fazendas para conquistar prestígio, poder e votos. A sala de aula era em um galpão junto ao curral e era comum vacas e bois enfiarem a cabeça nas janelas do galpão para algazarra da gárrula meninada. Geralmente, a professora dormia na fazenda em um quarto sobre o paiol. Em Macaé de Cima, no alto da serra, se avistava da escola preguiças, pacas, tatus, muitos macacos — e o povo dizia ainda haver onças pela região.

Nessa época, nos namoros, trocavam-se cartas, poemas, flores, lenços e cartões-postais. Os homens da elite trajavam ternos de sarja ou linho engomado, brim, lã ou panamá e gravata borboleta. Os sapatos eram de pelica ou verniz. Já as mocinhas, vestidos de linho, esponja ou seda, chapéu de renda, palha ou feltro, luvas e botinhas de pelica. Os costumes permitiam ao pretendente frequentar a casa da namorada após o ritual do noivado com o solene pedido da mão da moça ao chefe da família. Podia então noivar na sala de visitas, com direito a cafezinho, doces caseiros e licor. Nas espera do casamento, economizava-se para montar a casa e bordava-se o enxoval. A sociabilidade era assistir a retreta das bandas de música na "praça dos eucaliptos” e as festas religiosas. Igualmente reunia-se nos fins de semana na casa de um e de outro para ouvir choros de violão, banjo, flauta, pandeiro e cavaquinho. As sessões de cinema, dedicadas ao "belo sexo”, também eram uma forma de lazer. 

Todos esses elementos foram extraídos do livro de memórias da professora Hilda Faria, nascida em Nova Friburgo em agosto de 1920. Uma deliciosa leitura de seu livro "Maria Fumaça”, que nos conduz a um tempo da natureza pujante, da virtuosa vida rural, do trem pontuando o ritmo do dia, do cantar dos carros de boi e do romantismo na troca de poemas, lenços e cartões-postais. 


Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”

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Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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