Os tamancos dos operários das Rendas Arp - 8 de setembro 2011

sexta-feira, 06 de abril de 2012

“Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos, eu me lembro de você. Você que atende ao apito de uma chaminé de barro, por que não atende ao grito tão aflito da buzina do meu carro?... Mas você não sabe que enquanto você faz pano, faço junto do piano, estes versos pra você. Nos meus olhos você vê, que sofro cruelmente, com ciúmes do gerente impertinente, que dá ordenas a você.” Noel Rosa escreveu esses versos para a sua namorada que bem poderiam ter sido escritos, na segunda década do século XX, por um boêmio friburguense. A indústria mudou Nova Friburgo. Todos os dias, às seis horas da manhã, os moradores do centro da cidade eram despertados por um som estridor a que não estavam até então habituados: eram os tamancos dos operários que se deslocavam em várias direções da cidade rumo às fábricas. No apito do último trem do dia, hora de se recolher. No barulho do tamanco dos operários, hora de despertar. Associados ao sino do campanário da igreja Matriz ao meio-dia e às seis horas da tarde, eram sons que regiam o ciclo do dia dos friburguenses: o trem, o sino e o tamanco dos operários.

A nota lacônica da direção da Rendas Arp, anunciando o fechamento das atividades da fábrica, contrasta com as matérias dos jornais, no primeiro decênio do século XX, tecendo loas à vinda de Julius Arp e outros industriais alemães. A nossa cidade experimentará a sensação do estremecimento do seu solo para a força propulsora da indústria moderna; é o início de uma nova Era para Nova Friburgo, assim escreveu o articulista do jornal A Paz, em janeiro de 1911. “Colmeias de trabalho”, foi essa a metáfora atribuída a Nova Friburgo a partir da vinda de empresários alemães. Nova Friburgo entra na Era Industrial.

O alemão Peter Julius Ferdinand Arp (1858-1945) imigrou para o Brasil em 1882. E por que teve interesse em instalar uma indústria em Nova Friburgo? Possivelmente pelo fato de Nova Friburgo abrigar uma significativa população de descendentes europeus, mais disciplinados ao trabalho, provavelmente conjeturara. O estigma de que o caboclo brasileiro era um trabalhador “desqualificado”, “indolente”, fazia parte do imaginário da época. Amparado pelos vereadores da Câmara Municipal, o coronel Antônio Fernandes não dava impulso ao contrato de concessão de fornecimento de energia elétrica, atravancando o progresso local. Julius Arp conseguiu retirar do coronel Antônio Fernandes essa concessão. A energia elétrica era essencial para implementação de um parque industrial em Nova Friburgo. Ruía antecipadamente a República Velha dos coronéis em Nova Friburgo, não aguardando a Revolução de 30. Julius Arp fundou, em junho de 1911, a Rendas Arp. Igualmente cooptou outros industriais: Maximilian Wilhelm Bogislav Falck (Fábrica Ypu), Carl Ernst Otto Siems (Fábrica de Filó) e Hans Gaiser (Ferragens Haga).

Depois dos tamancos, vieram as bicicletas que cruzavam os bairros, com cada trabalhador dirigindo-se para a sua colmeia. Honrando o patriarcalismo nacional, os alemães construíram casas, escola e áreas de lazer para seus funcionários. Mas vieram as tensões sociais. Os primeiros operários, ainda desmobilizados em nível de categoria profissional, eram insuflados pelos ferroviários da Companhia Leopoldina. Mas havia o Sanatório Naval, garantidor da ordem pública. Não havia polícia militar à época e a polícia civil, com poucos praças, era incapaz de conter um conflito na cidade. Disciplina, esse era o projeto da Trindade Teutônica para Nova Friburgo. E assim, capitaneados por Julius Arp, os alemães foram hegemônicos em Nova Friburgo durante décadas. O poder público não os importunava. Quem não se recorda que o velho Rio São João das Bengalas mudava de cor a cada semana, com as indústrias têxteis despejando soberbamente seus produtos químicos nas águas tranquilas do rio? Mas o que nos importava naquele momento eram tão somente os empregos que as indústrias geravam. Quem precisava do turismo numa cidade que abrigava um dos maiores polos industriais do país e notadamente, duas multinacionais? Éramos o “paraíso capitalista”, jactava-se Heródoto Bento de Mello.

Já estamos habituados a presenciar a agonia das grandes indústrias, a exemplo da Fábrica Ypu. No entanto, quando uma fábrica fecha definitivamente, não deixa de ser impactante. Imediatamente vêm as memórias. Meu avô, meu pai, meu tio, meu irmão, quem não tem um familiar que trabalhou na Rendas Arp? Tempos difíceis, os alemães eram chefes rigorosos, mas trouxeram empregos. Alguém se recorda: “Meu pai trabalhou a vida inteira lá, criou onze filhos”. Um antigo alfaiate lembrou que os alemães eram os melhores fregueses de ternos. E os times de futebol das fábricas? Para atrair um bom jogador e tirá-lo de um time, bastava arranjar um emprego na fábrica e daí ele mudava de clube, sem pestanejar. Fechada a Rendas Arp, ficam as perguntas: Como e onde ficarão registradas essas memórias? E as primeiras máquinas, o que fazer com elas? E os registros dos primeiros operários? Que órgão será depositário desse acervo? Ainda bem que João Raimundo escreveu “Nova Friburgo: o Processo de urbanização da Suíça Brasileira – 1890-1930”, Rico escreveu “Cem anos de lutas operárias em Nova Friburgo” e Carlos Rodolfo Fisher “Uma história em quatro tempos”, deixando registros desse período. Mas o que não me sai da cabeça é o livro que Richard Ihns, executivo durante décadas da Rendas Arp, disse que escreveria sobre o período de sua gestão. Mas esclareceu que escreveria algo do tipo “diga a verdade e saia correndo”. Mas Santo Deus, por que Richard Ihns sairia correndo?

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Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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