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Os mercenários alemães por Schlichthorst - A Imigração Alemã - 28 de abril 2011
Parte 8
Entre os escritos de militares memorialistas sobre a epopeia dos mercenários alemães no Brasil, a exemplo de Theodoro Bösche em “Quadros Alternados”, consideramos o mais interessante o do alemão Schlichthorst, ex-oficial do Imperial Exército Brasileiro. Desembarcou no Rio de Janeiro em 14 de abril de 1824, servindo no período de 1824 a 1826, quando retornou ao seu torrão natal. Não gostava de Schäffer, lamentando ter sido engabelado por falsas promessas no Brasil. Schlichthorst era jovem e muito culto, uma espécie de dandy, e gostava de passear pelas ruas do Rio de Janeiro durante as suas folgas apreciando a natureza e, principalmente, as mulheres. Visitou residências de cônsules, de negociantes, e foi devido a sua atenção especial para com as mulheres da casa que nos legou interessantes observações sobre os papéis e o universo feminino na sociedade carioca do início do século 19. As suas memórias são uma deliciosa leitura e o seu galanteio para com o “belo sexo” nos diverte imensamente. Mas o que interessa aqui são os mercenários e é através de suas memórias que conhecemos boa parte do que aconteceu aos seus conterrâneos no Brasil. Vale a pena reproduzir as próprias palavras de quem vivenciou o cotidiano dos mercenários do Regimento de Estrangeiros nos quartéis do Rio de Janeiro, no Primeiro Reinado. Faremos o mínimo de intervenção possível, colocando “entre chaves” apenas algumas observações para melhor compreensão do texto.
Schlichthorst escreveu: “...Apesar de alistados em Hamburgo como colonos, no Rio de Janeiro eram imediatamente forçados a assentar praça. Só tinham liberdade para ir para onde quisessem os que haviam pago suas passagens; mas estes mesmos às vezes abandonavam suas colônias e voluntariamente se engajavam, sendo, nesse caso, reembolsados pelo Governo[pela passagem](...) Os oficiais vindos nesses navios de transporte, em parte se viam colocados na graduação que o Cavalheiro Schäffer lhes garantia em Hamburgo. Alguns, no entanto, ficaram decepcionados,[foi o caso de Schlichthorst que desejava servir na Marinha e não no Exército] o que se deve atribuir mais a desordem reinante no Ministério da Guerra do que a um engano proposital daquele Cavalheiro.(...) Sim, eu próprio que, mais tarde, pude me enfronhar no modo de vida do país e conhecer o sistema de suborno nele reinante, sabendo como sei que no Brasil tudo se arranja com dinheiro (...) bastando-lhe aparência decente e alguns milhares de táleres [dinheiro alemão] para pagamento da patente (...). Para alimento dum soldado, o Governo escritura por dia meia libra de carne e meia de pão; mas (...)recebem tão pouco [carne] que suas refeições quase se limitam a arroz e feijão. Além disso, a carne que lhes dão é da pior qualidade, isto numa terra como o Rio de Janeiro, onde a carne já é ruim. O pão é feito na maior parte de farinha de milho, apesar de pago como de puro trigo. A maioria dos soldados o vende, para beber mais cachaça. Cozinham-se alternadamente duas vezes por dia, arroz e feijão. Não se varia o alimento. Serve-se o rancho sem o menor asseio. O oficial-de-dia tem obrigação de provar a sopa, sendo realmente preciso grande força de vontade para engolir esse caldo nojento. O mais pobre escravo vive melhor, sem dúvida, do que o soldado estrangeiro no Brasil. (...) O que, no entanto, torna ainda mais intolerável a situação do soldado é a falta absoluta de qualquer comodidade nos quartéis. Em parte, não há sequer tarimbas e os homens dormem pelo chão em esteiras, com um cobertor. Atormentados por incontáveis insetos, procuram na cachaça alívio ao seu martírio e curto esquecimento de sua desgraça.(...) Não é difícil imaginar os excessos a que diariamente se entregam. A consequência é uma pancadaria bárbara, sendo raro o dia em que se não apliquem castigos de 50, 100 e até 200 chibatadas, nas costas nuas dos infelizes (...) Os de natureza mais forte sentem uma espécie de orgulho em dizer que suportaram durante seu tempo de serviço alguns milheiros de vergastadas. Diante de um tratamento desses, não é de admirar que as deserções sejam frequentes. Os que procuram o interior do país são logo agarrados [como os soldados presos em Nova Friburgo], porém, os que tentam escapulir por mar, raramente são descobertos (...) Castiga-se a deserção com 200 chibatadas nas costas nuas, dadas com finas vergastas de junco. Muitos as têm aguentado até quatro vezes, sem desistir de novas tentativas...”.
Referindo-se aos oficiais, Schlichthorst demonstra que passavam as mesmas agruras que os soldados rasos: “...a impossibilidade de viver decentemente sem procurar um ganha-pão secundário(...) os soldos dos oficiais, por mais importante que pareça de longe, não basta a cobrir as mais prementes necessidades (...) a maioria dos oficiais chega ao Rio de Janeiro sem dinheiro e, para se equipar, é obrigada a tomar grande adiantamento a ser descontado em seu futuro soldo. Como este geralmente não chega, caem nas garras de agiotas, que lhes adiantam o que têm a receber, cobrando juros....”. Schlichthorst deixa claro que todos esses problemas estruturais nos quartéis acabava minando a camaradagem entre os soldados, agravada pelo excesso da bebida alcoólica: a maldita cachaça. Na próxima semana “Os Colonos Alemães por Schlichthorst.”
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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