O casamento da roça

quinta-feira, 25 de junho de 2015

“Foi em um sábado. Meio-dia pouco mais. Os noivos saíram da matriz nadando em júbilo, pois que acabavam de receber a bênção do pároco unindo-os (...) Ele vinte cinco anos de idade, ela não excederia de vinte; ambos rosados, robustos, gozando sorridente mocidade, alegres, sem luxo, simplórios como em geral são os que nascem e vivem nas zonas agrícolas. O noivo e a noiva não tinham as mãos macias nem cobertas de pelica; viam-se nelas visíveis sulcos que deixam os instrumentos do trabalho rude da lavoura. E lá ia o ditoso par, seguindo pela rua, de mãos dadas, e seus lencinhos rendados pendentes nas outras mãos: acompanhavam-nos parentes e vizinhos, como eles lavradores. Era um casamento da roça, modesto, simples, sem ostentação, sem estrépito. Na esquina da rua estava posando um rapazola de boné branco e avental azul de riscado. Ao ver os noivos soltou a gargalhada da chacota, fez um gesto acapoeirado, exclamando com ar zombeteiro: o carnaval já passou, ora essa! Nesse momento passava uma senhora, seguiam-na uma filha de 13 anos e um filho de 12 anos; riu-se aquela, riram-se os filhos, riram-se todos enfim, porque acharam graça na graça do rapazola mofando dos noivos. (...) Para que rir? (...) As filhas da cidade levam na fronte ricas e primorosas grinaldas de sabido valor; as filhas dos campos e dos montes, as moças da roça quando se casam, enfeitam-lhe a fronte simples grinaldas; e quantas fazem-nas de flores naturais colhidas nas próprias laranjeiras. Rir daqueles que são simples, modestos, que têm outros usos e costumes mais singelos, que vivem com mais ingenuidade, sem luxo e afetação, é rir-se de si mesmo, é dar indício de  mau caráter, é dar prova de baixeza de sentimentos. Sim, porque o sacramento é o mesmo (...) e a bênção que o pároco lança sobre as cabeças dos noivos luxentos e vaidosos é idêntica a que cai sobre a dos noivos modestos e simplórios como em geral são os que nasceram e vivem nas zonas agrícolas.”

Essa crônica foi publicada em abril de 1894, no periódico O Friburguense. Acho-a extremamente curiosa e instigante. Curiosa, pois em fins do século 19, Nova Friburgo ainda era uma sociedade extremamente agrícola, e o seu núcleo de comércio e serviços muito longe da urbanidade. Sair do teatro D. Eugênia depois de uma maravilhosa ópera italiana e dar de cara com uma vara de porcos na praça era algo comum. A crônica é igualmente instigante por já existir na mentalidade local a oposição entre o roceiro e do homem urbano. Os historiadores estabelecem como marco inicial da formação das cidades no Brasil, de um modo geral, na década de 40 do século vinte. O processo de industrialização em Nova Friburgo se inicia em 1911, de forma gradual, e somente em meados daquele século se consolida nossa Era Industrial. Portanto, é curiosa a dialética entre campo e cidade na mentalidade dos friburguenses oitocentistas. Naturalmente o parâmetro do friburguense daquela época difere dos padrões dos historiadores. O roceiro e o casamento da roça foram em nossa tradição ridicularizados nas quadrilhas das festas juninas. O citadino era visto como tendo um nível de superioridade intelectual em relação ao campesino. Ter um gesto de urbanidade era um adjetivo positivo. O roceiro foi imortalizado no cinema pelo humorista Mazzaropi, que captou bem esse espírito e criou uma personagem hilária do homem do campo estúpido e rude. Igualmente Monteiro Lobato em Zeca Tatu. Nova Friburgo, em fins do século 19, possuía um avantajado comércio, um teatro, uma vasta e confortável rede hoteleira, um jóquei clube, muitos jornais (periódicos), uma fábrica de tamanco e uma torrefação. A iluminação era a gás, a água recolhida nas fontes públicas e a maior parte da população vivendo na zona rural. No entanto, nada impediu que o friburguense, morador da vila, considerasse o centro de Nova Friburgo uma “urbs”, fazendo mofa dos roceiros com gestos acapoeirados. 

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    Ainda na década de 30, tropas de mulas circulavam pelo centro da cidade

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    Detalhe para tropas de mulas cirulando nas ruas em meados do século 20 (Acervo Castro).

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    Em 1930, ainda se vêem charretes nas ruas

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Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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