“Num vô fazê a janta”: o destino de ex-escravos - Parte II

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Parte 2

Na semana passada se perguntou aqui nesta coluna por que os libertos não permaneceram nas propriedades agrícolas, com a extinção da escravidão, buscando novas relações de trabalho. Uma das razões pode ter sido o medo de um retrocesso político fazendo com que retornassem ao status quo ante de escravidão. A mudança do regime monárquico, que lhes outorgara a liberdade, para o republicano, parece ter provocado o fantasma da escravidão. Manteria o novo governo republicano a abolição da escravidão? Parece ter surgido essa dúvida e o boato se espalhou. A Secretaria de Polícia do Estado do Rio de Janeiro emitiu circular em novembro de 1889, declarando que os libertos continuariam a gozar dos direitos que lhes foram conferidos pela lei áurea para dissipar a boataria. O periódico de Cantagalo, "Nova Pátria”, em dezembro do mesmo ano, divulgou que no município havia o boato de que os libertos, por uma má interpretação do regime republicano, julgavam que iriam ser "reescravisados”. Fazia-se um apelo aos proprietários de estabelecimentos agrícolas para que procurassem convencer os libertos do contrário. Por fim, esclarecia que as instituições republicanas não se coadunavam com a escravidão. Essa fuga desesperada para não se sabe onde pode ter prejudicado a transição das relações de trabalho de escravos para colonos. Na vila de Nova Friburgo uma "pretinha” saiu esbaforida gritando: "Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta!”.

Como meeiros, parceiros ou camaradas, essas foram as relações de trabalho estabelecidas entre os fazendeiros e os colonos europeus, que imigraram para o centro-norte fluminense no final do século XIX, para substituir o trabalho escravo. Gioconda Lozada, em "Presença Negra”, jogou luz através de algumas entrevistas que realizou com descendentes de ex-escravos sua incorporação ao mercado de trabalho. De acordo com as entrevistas realizadas por Lozada, os libertos tiveram dificuldade em se estabelecer em fazendas onde havia a presença de colonos europeus. Parece-nos que esses colonos "terceirizavam” o serviço da lavoura empregando os libertos. Esse savoir faire dos libertos em relação a lavoura nacional pode ter sido aproveitado pelos colonos europeus que empregavam seus serviços como "camaradas”. Há o registro de que ex-escravos trabalharam "pegando empreitada com os italianos”. Em Duas Barras, libertos conseguiram trabalho como colonos, recebendo moradia. A colheita da cana-de-açúcar e do café era dividida com o fazendeiro. Se quisesse plantar de "meia”, o fazendeiro dava a terra já "capinada”. Se o liberto quisesse capinar, era a "terça”. Plantava-se preferencialmente café e cana de açúcar, mas havia igualmente lavoura de arroz, feijão, milho, alho e amendoim. O fazendeiro ainda adquiria a parte do liberto da cana de açúcar e do café. Algumas relações de trabalho eram na base da corveia: trabalhavam em suas próprias roças e "roçavam” três dias para o patrão. As mulheres costuravam, passavam e engomavam, completando a renda familiar. As crianças derrubavam e sopravam o café. Seu Joanico, de Varginha, foi um raro exemplo de afrodescendente proprietário de uma porção de terra. Seu avô fora feitor de uma fazenda e conseguiu uma parcela considerável de terras. No fogão à lenha, o feijão, o arroz, a carne e os legumes denotavam a prosperidade da família. A fração de terra que herdou foi cultivada por ele. Vendia aipim, batata doce, milho, feijão, ovos e galinhas no centro de Nova Friburgo. Um outro exemplo foi de um afrodescendente ferroviário. A escravidão havia sido abolida há apenas 12 anos e um descendente de ex-escravo conseguiu realizar o seu sonho: trabalhar na rede ferroviária. Inicialmente como limpador de locomotiva, depois como foguista e finalmente como maquinista na linha de Porto Novo a Nova Friburgo. Não havia horário certo de trabalho, era de cinco da manhã às nove da noite, e não havia igualmente sábado ou domingo, chuva ou sol. 

Percebe-se que ao longo dos anos, netos e bisnetos de ex-escravos vão se aproximando da urbs. No caso das mulheres trabalham como domésticas. Muitas vezes três gerações de mulheres trabalham no serviço doméstico para uma mesma família. Há referência de que verdureiros negros vendiam produtos de suas roças na cidade, ajudavam nas tachadas de goiabada ou na fabricação do polvilho. Os "negrinhos” vendiam roletes de sorvete em caixas de madeira com gelo, empregados por algumas senhoras friburguenses. Quando as indústrias se instalaram em Nova Friburgo, a partir de 1910, há indício de que afrodescendentes raramente eram admitidos nessas empresas. Depois da adequação e da sobrevivência dos libertos, pode-se afirmar que os bisnetos de ex-escravos já vão à escola, alcançando um novo status social. O problema da inserção do liberto no mercado de trabalho é ainda um campo incipiente de pesquisa. Todos esses dados são apenas recolhas de alguns registros que traz alguma luz sobre a trajetória de gerações de descendentes de ex-escravos. Recordando o grito de felicidade da ex-escrava pela vila de Nova Friburgo, quando se viu livre, de que não ia mais fazer "a janta”, fica a seguinte questão: Para onde ela teria ido? 


Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no facebook a página "História de Nova Friburgo”.


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História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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