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Não há prazer onde não há comer
quinta-feira, 20 de março de 2014
Nova Friburgo tem algo a dizer no que concerne ao sincretismo cultural. No século XIX, nos boqueirões entre as montanhas, já estavam instalados portugueses provenientes de Açores e da Ilha da Madeira. Nenhum resquício mais dos índios Coroados, Puris e Coropós que habitavam os Sertões do Macacu. O africano, assim como o português, foi um dos primeiros habitantes dessas paragens, na condição de escravo. Chegam os suíços em princípios daquele século, somando-se logo em seguida os colonos alemães. Já no fim desse mesmo século, muitos italianos imigram para Nova Friburgo, além de portugueses e alguns poucos espanhóis. Os árabes chegam paulatinamente em pequenos grupos familiares e a Babel está formada. Foram os árabes que incrementaram a doceria portuguesa. O árabe invasor leva a cana-de-açúcar à Península Ibérica. Anteriormente, os portugueses utilizavam o mel na confecção dos doces, mas o açúcar abre-lhe novos horizontes, ampliando sobremaneira sua pastelaria. O português trouxe o açúcar para o Brasil e os engenhos desde o período colonial se espraiam pela Terra de Santa Cruz.
Em pesquisa realizada desde o fim do século XIX, é curioso observar como somente localizamos os doces na vida material do friburguense oitocentista. Açúcar não faltava na região — e certamente da melhor qualidade —, provido pelo Engenho Central Laranjeiras. Localizado onde hoje é Itaocara, esse engenho centralizava a produção de açúcar adquirindo dos fazendeiros locais a cana in natura, ou na forma de melaço ou de rapadura. Pioneiro à época, desenvolveu um açúcar cristalizado, mais claro, com uma granulação uniforme, já que a maioria das usinas produzia apenas o açúcar mascavo.
O encerramento do calendário escolar em Nova Friburgo naquele fim de século ocorria na primeira quinzena de dezembro, sendo um grande acontecimento social na cidade. Na sabatina do alunado, familiares e convidados se comprimiam na audiência, já que a avaliação dos discentes consistia em verdadeiros espetáculos. Havia apresentação de peças teatrais e musicais pelo alunado e uma suntuosa mesa de doces era sempre oferecida no intervalo. Nas soirées, forma de sociabilidade na qual as senhoras executavam peças musicais e os homens se destacavam por discursos argutos, um delicado menu de doces era servido em mesas ornadas com belas flores naturais. Em soirée realizada em 1891, o Club Recreativo Friburguense promoveu uma partida dançante a qual compareceu a high life friburguense. Neste seleto club, a cordialidade e a animação deram o tom da festa, animada pelas valsas. Na ocasião, o repasto com um requintado buffet de licores, vinhos, cervejas, farta doceria e maçãs finas. Como vimos, os pratos salgados estão ausentes. Já no século XX, há a memória dos rebuçados de Lisboa e o registro de baleiros apregoando pirulitos de calda queimada pelas ruas da cidade.
A história da alimentação é sempre algo fascinante e tem sido cada vez mais objeto dos historiadores. Se observarmos, muitas de nossas palavras e expressões são metáforas dos alimentos: "bacalhau de porta de venda” é um adjetivo para a mulher magra; já "linguiça”, um homem magro; "banana” é um sujeito tolo, covarde ou amaricado; "é na batata”, acertou no alvo; "biscoitar” é surrupiar; "bofe” é mulher feia ou velha meretriz; "cachaça” significa vício em alguma coisa; "café pequeno”, facilidade; "cocada”, um tapa, um bofetão; "comer couro”, ser surrado; "comer calado”, fazer algo pacientemente; "farofeiro”, mentiroso; "galinha” é covarde, pederasta ou mulher lasciva e já "galo” é brigão ou mulherengo; "manteiga” é molenga; "de molho”, em observação; "um ovo”, apertado; "pamonha”, desprovido de iniciativa; "panelinha”, minoria influente; "pão, pão, queijo, queijo”, significa equivalência justa; "pão duro”, avarento; "Está no papo”, coisa resolvida; "pato”, o otário; "peixão”, mulher bonita; "angu de caroço”, complicação, bagunça; "descascar o abacaxi”, resolver habilmente a situação; "empada”, preguiçoso; "gostar da fruta”, cachaceiro; "cuscuz”, seios flácidos; "fruta verde”, mocinha; "filé”, moça atraente ou rapaz afeminado; "ganço”, pileque, bebedeira; "cheirando a mangaba”, bêbado; "ponto de bala”, momento de agir; "papa-goiaba”, natural do Estado do Rio; "sal e pimenta”, cabelo grisalho; "tomate”, testículos; "Ora pipoca!”, exclamação de desabafo.
A relação é inesgotável e deliciosa, nos ensina Câmara Cascudo em História da Alimentação no Brasil. A colonização portuguesa nos legou a fartura da mesa, que herdou dos quatro séculos de ocupação árabe. A mesa do brasileiro, ainda que pobre, sempre foi farta. Diferentemente de outros povos, não há no Brasil visita que não se regale com um cafezinho e um pedaço de bolo. Dos portugueses aprendemos: Não há prazer onde não há comer.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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