História regional—Parte 2: Tenentes do inferno e caturras: o carnaval de Cantagalo

quinta-feira, 07 de fevereiro de 2013

No Segundo Império, Cantagalo vivia a sua Belle Époque. Apesar de sua vila pacata possuir um casario singelo e construções modestas, não traduzindo a riqueza produzida na região, pululavam nos solares das fazendas da região grandiosos saraus. A nobreza da terra se ufanava de seus títulos e riquezas. O Imperador D. Pedro II visitara duas vezes Cantagalo e a princesa Izabel uma vez, hospedando-se no solar do barão de Nova Friburgo. Na segunda matéria dessa série de história regional, vamos discorrer sobre o carnaval de Cantagalo. A folia cantagalense não difere muito do carnaval fin de siècle que pesquisei sobre Nova Friburgo. Os ditos espirituosos, a ideia e a pilhéria com críticas ao governo municipal, o entrudo moleque, os retumbantes Zé Pereiras e os grupos de rapazes e moças que percorriam as casas e o comércio, troteando e “pintando o padre”, tudo isso fazia parte da folia da cidade dos melros. 
O carnaval de Cantagalo era realizado no salão nobre do Teatro Cantagalense, que teve a honra de receber, em certa ocasião, o Imperador D. Pedro II, que valsou com uma dama da elite cantagalense. Imenso e majestoso, o Teatro Cantagalense foi construído em 1853, passando por uma reforma em 1870, um dos raros elementos simbólicos de sua Era de Ouro. Possuía no teto do salão nobre um grandioso candelabro de cristal, com muitos braços, mangas artísticas nas paredes laterais, igualmente forradas com papel de parede, um luxo à época. Havia inclusive um toilette para as senhoras, outra novidade, numa época em que não havia banheiros nas residências. Por esse salão, valsou gente fidalga pertencente aos seletos clubes como os “Aliados” e a “Sociedade Dançante Fênix Recreativa”, nos informa Acácio Ferreira Dias, em “Terra de Cantagalo”. A nobreza cantagalense chegava em vistosas seges e troleis puxados por parelhas guiadas por escravos agaloados e de cartola. Na frente do teatro realizavam-se animadas batalhas de confetes alcançando toda a extensão da rua que virava um mar desse apetrecho. Eram frequentadores do baile os condes de Nova Friburgo, barão de Cantagalo, barão de Duas Barras, barão de Aquino, Marques da Cruz, barão do Dourado, entre outros da aristocracia cantagalense. 
Já no período republicano, o carnaval de rua ganha visibilidade através da imprensa local. O periódico “O Voto Livre”, de 17 de novembro de 1889, publicava: “Phenix Recreativa - No dia 1° de dezembro terá lugar a 4ª  partida dançante desta sociedade...”. Era o carnaval dos infernais Zé Pereiras com bombos, caixas e latas de querosene. Rapazes armados de enormes seringas de folha e cheias de água invadiam as residências, defendendo-se as moças e as donas da casa com baldes e latas igualmente cheias de água. Uma batalha sem vitoriosos, pois todos ficavam molhados nessas encarniçadas brincadeiras. Posteriormente, as seringas e os baldes d’água foram sendo substituídos por limões de cheiro, fundidos em cera ou em balões de borracha. Alguns mais galhofeiros atiravam farinha de trigo e pó de sapato no rosto dos transeuntes e sopapos e cachações rolavam por conta dessa brincadeira. Com o decorrer dos anos, além das bisnagas foi surgindo o lança-perfume, e as latas d’água e as seringas foram sendo substituídas pelo confete e serpentinas. Fantasias como dominós e diabos eram as preferidas, mas havia igualmente as de padre e homens travestidos de mulher. Era comum os foliões percorrerem as residências, dando “trotes” e fazendo a tradicional pergunta: “Você me conhece?”. O anonimato por detrás das fantasias eram o maior divertimento da época. 
Naquele tempo, o carnaval era mais politizado e a oportunidade para se fazer críticas aos políticos da época. Os foliões procuravam imitá-los e ridicularizá-los através da pilhéria. No início do século XIX, foram surgindo os clubes carnavalescos como “Tenentes do Inferno” e “Caturras”, os cordões “Treme Terra” e “Avança”, embalados por tambores, pandeiros e atabaques, fantasiados de índios e pastorinhas. Os cordões eram folias muito apreciadas pela elite da época: havia o cordão “Gargantilhas”, formado por moças, e os “Destemidos”, formado por rapazes. O espírito crítico e humorístico igualmente embalava a elite da época. 
Na quarta-feira de cinzas havia o enterro do carnaval, onde os foliões transportavam um caixão, levando o “defunto”, acompanhado de música e de um padre. Mas essa Belle Époque teve um fim. O declínio econômico de Cantagalo, iniciado desde o último quartel do século XIX, estendeu raízes sobre a sociabilidade cantagalense. Terras esgotadas pelo plantio do café, o fim da escravidão e uma virulenta epidemia de febre amarela, iniciada em 1891, quase risca Cantagalo do mapa geográfico. O Teatro Cantagalense foi demolido em 1952, para dar lugar ao cinema El Dorado. Não fossem algumas obras históricas deixadas por memorialistas locais, a história de Cantagalo estaria de fato riscada, não do mapa geográfico, mas da memória das gerações futuras. Na próxima semana, “Cantagalo Retalhada”.

Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora do livro “Histórias da História de Nova Friburgo”. historianovafriburgo@gmail.com

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Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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