Fugir da morte, eis a grande tentação

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

A maneira como os suíços lidam com a morte me chamou a atenção em visita recente que fiz a esse país. Quando alguém falece na Suíça, o corpo fica uma semana sendo velado na igreja para que parentes e amigos possam, durante aquele período, visitar o falecido em tempo e hora que mais lhe for conveniente. As pessoas ainda são enterradas nos pátios das igrejas, devendo as sepulturas serem bem cuidadas, ornadas com flores, sob pena de perderem o direito de sepultura naquele local. Na missa de corpo presente, proibida no Brasil não sei por que razão, faz-se uma coleta de dinheiro entre os parentes e amigos e doa-se para uma instituição de caridade no qual o falecido tinha afinidade. Após a missa e o respectivo enterro, um repasto fúnebre que os suíços denominam de "apperitif”, no qual reúnem familiares e amigos para falarem da vida do morto. O historiador francês Philippe Ariès direcionou suas pesquisas à história das atitudes do homem Ocidental perante a morte: como se passou, lenta, mas progressivamente, da morte familiar, domesticada na Idade Média, para a morte repelida, interdita nos tempos atuais. Fugir da morte, eis a grande tentação do Ocidente. De acordo com os filósofos, é estreita a relação entre bem viver e bem morrer. Somente vivendo com o pensamento na morte, isto é, consciente de que se irá morrer um dia, é que se pode aproveitar bem a vida. Historiadores, sociólogos e psicanalistas que se detêm no estudo da morte na atualidade têm verificado um fenômeno recente, o "desaparecimento da morte”. Segundo eles, a sociedade contemporânea baniu-a de seu círculo de convivência. 

Conforme Ariès, o comportamento diante da morte foi rompido após a Primeira Guerra Mundial. As atitudes tradicionais foram abandonadas e sendo substituídas por um novo modelo do qual a morte foi como que expulsa. O interdito dela é um atributo da modernidade, acompanhando os progressos da industrialização, da urbanização e da racionalidade. Ainda no início do século 19, o sofrimento e a doença de um ente familiar era suportado pela família dentro de casa, com todos os inconvenientes que uma doença provoca. Mas desde meados do século 20, a morte passa a ser escondida no hospital. Os progressos da medicina conduziram o doente em estado grave a permanecer no hospital. Este passa a fornecer às famílias o asilo apropriado para o doente, para que elas pudessem continuar uma vida normal. O hospital passa, então, a ser o local da morte solitária e higiênica. Há igualmente a interdição do luto. Não convém mais anunciar seu próprio sofrimento e nem mesmo demonstrar o que se está sentindo. Com a supressão do luto, a morte parece vergonhosa e interdita. Torna-se inconveniente e passa a ser quase proibido torná-la pública. O novo consenso exige que se esconda aquilo que antigamente era preciso exibir e mesmo simular o sofrimento: chora-se, apenas, em particular, como nos despimos privativamente, às escondidas. Tudo se passa como se ninguém morresse mais. Até o antigo carro mortuário negro foi substituído por um discreto veículo. 

No século 19, quando os poderosos homens iam perdendo as forças e uma grave doença se abatia sobre eles, diante da morte que se anunciava e era iminente, tornavam-se humildes. Pediam para serem enterrados com indumentárias de ordens religiosas ou mortalhas simples, libertavam escravos, deixavam missas pagas para si e uma parentela morta anteriormente. O Barão de Nova Friburgo(1795-1869) pediu ritos simples por ocasião de sua morte. Solicitou ser envolto em um pano preto, colocado em caixão simples e enterrado em cova rasa. Atualmente, as classes altas fazem questão de um caixão de luxo, boas flores, maquiagem apropriada, para bem chegarem na última morada. O comportamento do homem diante da morte ao longo da história é algo realmente instigante.

Segundo sociólogos e historiadores, três fenômenos acompanham o tratamento da morte na modernidade: Inicialmente a ocultação dela, como se não existisse;  segundo, a transferência para o hospital e, por fim, a extinção do luto. Até a guerra de 1914, em todo o Ocidente, a morte de um homem modificava notadamente o espaço e o tempo de um grupo social, podendo até mesmo se estender a uma comunidade inteira. O grupo social era atingido por ela. Fechavam-se as venezianas do quarto do de cujus, acendiam-se as velas, punha-se água benta; a casa enchia-se de vizinhos, de parentes, de amigos murmurantes e sérios. O sino dobrava na igreja de onde saía a pequena procissão. A partir da segunda década do século 20, a sociedade já não faz uma pausa: o desaparecimento de um indivíduo não mais lhe afeta o cotidiano. 


Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de

diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”


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Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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