A fotografia post mortem

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Tendo sido por longo período um apanágio da aristocracia e da burguesia, o retrato se difunde e torna-se íntimo no século 19, na Europa. As miniaturas, os pingentes, os medalhões e as coberturas de caixinhas de pó facial ostentam os rostos amados. Entre 1786 e 1830, o physionotrace Gilles Louis Chrétien contribui para alimentar a moda do retrato. Em apenas um minuto, o artista reproduz com um aparelho os contornos da sombra desenhada pelo rosto do modelo. Basta transportar em seguida o perfil para uma placa de metal e gravá-lo para obter uma série de imagens. Os perfis obtidos, amiúde de grande semelhança, não tinham vida nem expressão. O daguerreotipo irá superar essa insuficiência.

Em 1839, Daguerre registra a patente do procedimento que lhe permite fixar em uma placa de metal um retrato. Registrada em 1841, a patente desse novo processo sofre uma série de melhorias técnicas ao longo dos anos. Lança-se o retrato em forma de cartão de visita, medindo 6 por 9 centímetros. Os fotógrafos se instalam por toda parte e até mesmo nas menores cidades. A representação da própria imagem é algo que instiga o sentimento de autoestima. No interior do estúdio-teatro repleto de acessórios, é o corpo inteiro que se passa a registrar. Esta teatralização das atitudes, dos gestos e das expressões faciais, a pose, invade paulatinamente a vida cotidiana.

Os retratos fotográficos se difundem e são inseridos cuidadamente em álbuns fotográficos. Quando surge a técnica do retoque a partir de 1860, os traços do rosto se suavizam e manchas, vermelhidões, rugas e verrugas desaparecem. Esteio da rememoração, a foto renova a nostalgia. Opera-se uma mudança na memória familiar. Porém, o que mais impressiona na história da fotografia é a representação do defunto post mortem. A foto do familiar falecido atenua a angústia de sua perda. Nas lápides coloca-se o retrato do defunto do tipo medalhão-fotografia, um apelo à permanência da lembrança.

Encontrei uma dessas preciosas fotografias post mortem no álbum de família de Leyla Lopes. Ela mantém a memória familiar de seus ancestrais dos lados paterno e materno, portugueses e libaneses, que imigraram para o Brasil no final do século 19. Foi ali que encontrei a fotografia de uma criança morta, como se estivesse dormindo.  Leyla Lopes nos informa que de acordo com a memória familiar, a criança faleceu quando o pai estava ausente, em uma viagem. A foto foi tirada para que tivesse uma última recordação da filha amada. A fotografia post mortem, também conhecida como fotografia funerária, é a prática de fotografar pessoas recentemente mortas. A fotografia de parentes falecidos fazia parte da cultura europeia no século 19, e princípio do século seguinte. Era a última e derradeira memória visual do falecido e estavam entre as mais valiosas fotografias da família.

A fotografia post-mortem permitiu que se guardasse o último momento do defunto. Os mortos eram posicionados para sugerir que estavam simplesmente adormecidos ou colocados de modo a parecerem mais realistas, com os olhos abertos. Antes do rigor mortis, o defunto era colocado em uma representação da vida cotidiana, geralmente junto a algum membro da família. Às vezes até em pé, sendo que por trás dele havia uma parafernália de instrumentos para mantê-lo ereto naquela posição. As crianças eram frequentemente representadas descansando em um sofá ou em um berço, às vezes com um brinquedo. Não era incomum fotografar uma criança morta com os irmãos ou com a mãe. O cenário era tão bem elaborado que hoje em dia temos dificuldade de saber quem era o defunto na foto. Algumas imagens eram especialmente coloridas para acrescentar um tom rosado às bochechas do falecido.

Fotografias retratando pessoas que morreram em um caixão ou em funerais apareceram mais tarde. Sobre essa imagem temos um registro no distrito de Amparo de uma mulher dentro do caixão. Um costume bizarro para os dias atuais. No entanto, a última imagem do familiar falecido representava para os nossos antepassados uma forma carinhosa de perpetuar a sua memória.

  • Foto da galeria

    Foto de uma criança recém falecida. Acervo Leyla Lopes

  • Foto da galeria

    Fotografia do defunto em um caixão se tornaram comuns, como essa em Amparo

  • Foto da galeria

    O retrato medalhão-fotografia, no cemitério de Amparo.

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Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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