Colunas
Empregadas domésticas: as crias da casa
quinta-feira, 04 de abril de 2013
“Solicitamos medidas enérgicas e urgentes que regularizem o serviço doméstico. Não carece demonstrar as dificuldades que aparecem quando se precisa de um criado de servir, de um cozinheiro, pajem, ama de leite, ama seca, cocheiro, jardineiro, hortelão. Não são somente dificuldades de serem encontrados tais servidores, as pessoas ou famílias que carecem dos seus serviços, além de estarem sujeitos a pagar bons ordenados e dar-lhes o melhor tratamento, estão sujeitas também a ficarem privados desses serviços de um para outro momento(...) organize pois, a municipalidade, um regulamento nesse sentido, estabelecendo a matrícula dos servidores domésticos sob quaisquer denominações; forneça a estes as competentes cadernetas, fazendo-se nestas as devidas anotações; estabeleça direitos e deveres para os criados e para os amos; condições de admissão e saída dos servidores contratados; proibição dos criados não poderem deixar o serviço sem prévio aviso e das amas de leite não abandonarem os amamentados sem terminar a criação...” Esse discurso foi feito por um articulista, no final do século XIX, publicado no periódico “O Friburguense”, em 13 de novembro 1892. Nessa ocasião, havia passado tão-somente quatro anos da abolição da escravidão. A elite da época, habituada ao trabalho forçado do africano, pede providências à municipalidade no sentido de dificultar que os empregados domésticos abandonem as “casas de família”. Cozinheiro, pajem, ama de leite, ama seca, cocheiro, jardineiro e hortelão eram exatamente as profissões que exerciam os escravos. Só que livres do cativeiro, tinham o livre arbítrio de permanecerem ou não em seus empregos.
Analisando o artigo acima, poderíamos crer que o discurso da elite não mudou desde o século XIX. Quem representa bem essa classe social é a colunista Danusa Leão. Em sua coluna publicada na Folha de São Paulo, ela repete o mesmo argumento das elites oitocentistas, ao analisar o projeto de lei que prevê o pagamento do FGTS, entre outros benefícios, às empregadas domésticas, aprovado em primeiro turno pelo Senado Federal. Segundo Danusa Leão “Essa Pec das empregadas precisa ser muito discutida; como foi mal concebida, assim será difícil de ser cumprida, e aí todos vão perder. A intenção de dar as melhores condições à profissional, faz com que seja quase impossível que o empregador tenha meios de cumprir com as novas leis; afinal, quem vai pagar esse salário é uma pessoa física, não uma empresa... Se essa PEC não for muito bem discutida, pode acabar em desemprego [das empregadas domésticas].”
No século XIX, quando o fim da escravidão era debatido na sociedade, os proprietários de escravos argumentavam que os cativos africanos não podiam ser libertados, pois sem a proteção deles, que lhes fornecia abrigo e alimentação, seriam entregues à própria sorte. Segundo os escravocratas, os escravos não podiam ser livres, pois eram incapazes de se proverem e o seu futuro seria a miséria e a indigência. O argumento de Danusa Leão não tem certa similaridade com o discurso das elites oitocentistas?
Como era o serviço doméstico em Nova Friburgo nas primeiras décadas do século XX? Yolanda Brugnolo Lívio Barilari Bizi Cavalieri d´Oro, em suas memórias, pouco mais de quarenta anos depois de extinta a escravidão (1888), ilustra bem como ficou a situação dos ex-escravos e seus descendentes em Nova Friburgo. Sua infância é povoada de empregadas e crianças negras em sua residência, numa convivência doméstica e amistosa. Yolanda tinha quatro anos quando Felizmina veio trabalhar em sua casa. A avó e a mãe de Felizmina já haviam sido empregadas anteriormente da família. Felizmina ficou na casa de Yolanda por 27 anos e segundo ela “ajudou a nos criar, participando de nossa vida mais como amiga do que como empregada”. Já sua avó Anita reclamava que a cozinha da casa de Yolanda parecia uma senzala, sempre cheia de negros: “E era verdade. Mamãe acolhia-os, ajudava-os, ensinava-os a ler, a viver. Também, nunca precisou fazer trabalhos pesados, sempre havia alguma negra adorando trabalhar para ela, verdureiros [negros] perguntando se D. Carmen queria “rapoio” (repolho), vizinhos mais pobres ajudando nas tachadas de goiabada ou na fabricação do polvilho (...). Era Mamãe quem escolhia os feitios dos vestidos natalinos das pretinhas e as ajudava nas tarefas escolares”. A avó Anita tinha uma empregada que a acompanhava há anos, de nome Fortunada. Era uma velhinha preta, nascida escrava, que “executava suas ordens sem pensar em discutir”. Yolanda se recorda dos roletes de sorvete apregoados por moleques negrinhos com suas caixas de madeira com gelo, empregados de algumas senhoras da cidade.
Esse registro feito por Yolanda nos mostra a posição dos afrodescendentes após a escravidão. Não parece ter alterado muito desde os tempos do cativeiro: residiam na casa do patrão, criavam seus filhos e não tinham vida própria. Já os moleques, serviam como negros de ganho das senhoras friburguenses, vendendo roletes de sorvete. Até algumas décadas atrás as empregadas domésticas eram ainda crias da casa, ajudavam a criar os filhos da patroa, tinham um cômodo na casa, dormiam no emprego e o mais significativo é que, muitas vezes, eram quase três gerações trabalhando para uma mesma família. Atualmente, as empregadas domésticas buscam uma mudança nas relações de trabalho com a equiparação às demais categorias profissionais. Os engenheiros já não incluem em seus projetos os quartos das empregadas domésticas. A elite brasileira resistiu até quando pode em mantê-las sob o seu jugo, sob uma forma de servidão. Não podem ter muitos direitos, como pensa Danusa Leão, pois isso irá gerar desemprego em sua categoria profissional. A elite brasileira não consegue aceitar o processo civilizatório.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora do livro “Histórias da História de Nova Friburgo”. historianovafriburgo@gmail.com
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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