Correio de Cantagalo

quinta-feira, 06 de fevereiro de 2014

Há um tempo atrás, recebi a generosa doação de um exemplar do "Correio de Cantagallo”, de 15 de dezembro de 1881. Na matéria de hoje, compartilho com o leitor a deliciosa leitura desse documento histórico. Esse periódico era publicado às quintas-feiras e aos domingos, estando em circulação há dez anos no município de Cantagalo. Apenas para contextualizar, Cantagalo, outrora berço dos barões do café do Centro-Norte fluminense, era, nessa ocasião, um município em decadência, devido à decrescente produtividade de suas lavouras de café. Tecendo uma leitura do periódico, nos chama a atenção, de imediato, a coluna Folhetim. Muito comuns no século XIX, os contos eram divididos em capítulos, em um espaço literário que projetou muitos escritores que iniciaram sua carreira como articulistas dos periódicos, a exemplo de Machado de Assis. A publicação e a aquisição de um livro era algo muito raro. Sob o título de "Mamãe Rocambole”, de autoria de P. Zaccone, é uma delícia a leitura do primeiro capítulo "O atentado da Rua Bellechasse”. A seguir, a notícia de um júri na cidade em que dois escravos, Honorato e José, de propriedade do fazendeiro João Teixeira de Carvalho, eram acusados do assassinato do feitor da fazenda, Alexandre Rodrigues Pereira. Assistidos por um curador, Honorato foi absolvido e José foi condenado às galés perpétuas. Curiosamente, o juiz apelou da sentença de absolvição de Honorato ao Tribunal da Relação. Atualmente, um juiz nunca entraria com um recurso ex-ofício de um réu absolvido, o que demonstra o rigor do processo penal contra os delitos praticados por escravos. A emancipação de escravos estava em andamento. Uma pequena nota informava que "Na distribuição da 3° quota do fundo de emancipação, coube à este município a quantia de 37:033$000.” Na página seguinte, o presidente da Junta classificadora de escravos e igualmente presidente da Câmara Municipal de Cantagalo, marcava data para reunião da respectiva junta para definição dos escravos que seriam alforriados, de acordo com o quinhão que coubera àquele município. Nos anúncios, a venda de escravos era uma constante. Nesse periódico, anuncia-se a venda de escravas muito prendadas e "excellentes figuras”. Os escravos cozinheiros, "peças especiais”, eram muito valorizados. O Hotel Abreu anuncia: "Precisa-se de um cozinheiro; prefere-se escravo, e sendo livre, exige-se prova de sua conducta.” Analisando esse anúncio, nos parece que os cantagalenses alugavam escravos, sendo geralmente indivíduos remediados, o que hoje corresponderia a uma classe média baixa. Ainda que livre, o liberto deveria comprovar boa conduta. E como se provaria àquela época ter boa conduta? Possivelmente, um liberto que não se metesse em "barulho”, confusão. 

A venda de uma importante chácara, a Chácara do Pombal, a 1 km da cidade, situada na linha dos bonds do Cordeiro, nos desperta a curiosidade e nos abre uma janela para conhecer uma boa propriedade agrícola no final do século XIX. O seu dono faz questão de esclarecer que se desfaz dela apenas porque está de mudança para a Corte. A chácara possuía 250 mil metros quadrados, com uma imensa casa, toda assobradada, com casa para troly(carruagem), cocheira, quartos para ferramentas, cômodos para empregados, moinho, paiol, "tanque de pedra para lavar”, boa água para beber e para o serviço de cozinha, com encanamento de pedra. A seva de porcos era de pedra, "feita a capricho” e o galinheiro igualmente no "capricho”. A chácara possuía 12 mil pés de cafés plantados, horta cercada com ripas pintadas, jardim, pomar, pasto de gordura e de grama, roças de milho e de arroz. Anuncia que a propriedade tinha banheiro, uma raridade à época. Algo que nos chama a atenção é o fato de não haver senzala, apesar da propriedade ser vendida com ou sem escravos: "gente(escravos) muito boa, aclimatada e averbada neste município”. Não menciona o número de escravos e quanto ao fato de não declarar haver senzala, possivelmente se referira ao cômodo de empregados como o local em que ficavam os cativos. Desde que, em 1850, o tráfico de escravos foi proibido, o preço da "peça” ficou cada vez mais valorizada e os fazendeiros passaram a dar-lhes melhor tratamento. Enfermarias foram edificadas em algumas fazendas pois a doença ou o falecimento de um escravo representava um enorme prejuízo. 

Finalmente, outra coisa curiosa era a exposição pública que se faziam nos jornais de rixas pessoais, muito comum nos jornais do fim do século XIX. O Barão de Aquino veio a público se queixar de maledicências em relação a sua honestidade devido a um prêmio que recebera na loteria da Corte: "Constando-me que certos caracteres invejosos e malévolos tem procurado nodoar a minha reputação, que felizmente é bem conhecida e considerada pelas pessoas de elevado critério, sendo apenas posta em dúvida por indivíduos sem dignidade e consciência, que só buscam desvirtuar a reputação alheia, com o fim de dar expansão ao seu gênio atribilário e repleto de malvadez(...)ainda continuarão os meus miseráveis caluniadores com os seus latidos?(...)Não desceria a dar estes esclarecimentos ao público, se não fosse a consideração de amizade e respeito que dispenso a muitos dos distintos cidadãos do município do meu nascimento: porque a canalha e invejosos se despreza!”. 


Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”

TAGS:
Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.