“Comida de preto é couro”

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Segundo o Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor), 683 produtores cultivam flores e plantas ornamentais em 950 hectares no estado do Rio de Janeiro. O setor movimentou R$470 milhões em 2012, gerando 17,6 mil empregos. A locomotiva do crescimento é Nova Friburgo, que responde por 40% da produção fluminense e perde apenas para Holambra, em São Paulo. (O Globo, de 15 de setembro de 2013, Caderno "Rio”, "Flores dão colorido à economia do interior”.) A localidade de Nova Friburgo onde se cultivam essas flores é Vargem Alta, que faz parte do distrito de Lumiar. Astromélia, gérbera, era-paulista, crisântemo, boca-de-leão, chuva-de-prata e lavoura melindrosa como saudade e rosa, entre outras, são exemplos de flores de sua produção. Cada propriedade vende, diariamente, para o Rio de Janeiro, um caminhão-baú com flores, algumas até dois caminhões, enfrentando as péssimas condições das estradas. Essa localidade segue a tradição de Nova Friburgo na produção de flores em que os cravos foram a vedete em um passado remoto, merecendo inclusive uma festa anual, a festa dos cravos. No entanto, a delicadeza das flores encobre a mentalidade de uma comunidade eivada de preconceitos de raça e de tensão social no passado. Até algumas décadas atrás, segundo relatos de seus moradores, não se admitia negros na comunidade. A repulsa pelo negro chega a um nível de acrimônia excessiva. Certa feita, um praça negro veio prender um indivíduo branco que havia praticado um delito na região. O homem indiciado se queixou ao delegado: "Quando mandar alguém me prender manda um branco e não um preto”. Estaria essa circunstância ligada ao atavismo de sua origem? Para essa região migraram colonos alemães e suíços e posteriormente imigrantes italianos. Os dois primeiros buscavam terras mais férteis do que aquelas que lhes haviam sido outorgadas pelo príncipe regente D. João VI, no núcleo colonial. Essa transumância ganha um traço épico no entusiasmo de Raphael Jaccoud e formam-se alguns clãs na região. Mas a concessão de terras na história do Brasil sempre foi privilégio de brancos. Em uma Carta de Lei de 1809, D. João VI institui, no Brasil, a Ordem da Torre e Espada, franqueando aos comendadores, para "aumento da agricultura e povoação”, o direito de aforarem parte do terreno das comendas tão-somente a colonos brancos. Como se percebe, a "escorralha” de negros, mestiços e mulatos foi preterida na distribuição de terras, não somente por sua condição social, mas principalmente étnica. Como dito antes, os italianos migram para Vargem Alta e dedicam-se a atividades como carvoeiros e ao cultivo da lavoura branca. De acordo com relatos de antigos moradores, iniciam-se os conflitos e assassinatos recíprocos entre os clãs. Os italianos eram afeitos às tropelias das tocaias. Já os suíços "matavam na cara” os seus desafetos. Os italianos eram tão violentos que chegavam ao ponto de não retirarem as esporas das botas quando dançavam nos bailes para machucar os pés das moças do casal vizinho que bailava. O delegado costumava exigir-lhes que assinassem o termo de bom viver depois de alguma tropelia. Os casamentos eram praticamente interfamiliares de tão fechada era aquela sociedade. Ainda hoje guarda longa tradição: uma pedra chamada "sismaria” ainda é indicada como referência geográfica por moradores locais. Mas todos os colonos e imigrantes europeus se aculturaram. Matava-se muito capado, cortava-se a pele em tiras, salgava-se e colocavam-se as peças penduradas no teto sobre a fumaça das panelas do fogão à lenha. Pela manhã, "batia-se” uma panela de angu de aproximadamente 5 "litros” (hoje kg) de fubá, comia-se broa de milho, aipim e batata-doce e fazia-se a rapadura. Nada da tradição suíça ou alemã se localiza nessa região. Ainda hoje os mais antigos têm alguns pés de café java no quintal que colhem e torram e igualmente uma boa horta onde se suprem no dia a dia. A velha tradição da autossuficiência ainda está presente entre os moradores mais antigos, típica de comunidades isoladas do núcleo urbano. Ribeirão das Almas quer ser independente de Vargem Alta, que se divide, outrossim, em Vargem Alta de cima e de baixo. Qual é a razão de um espírito tão belicoso nessa região? Nem a quase centenária Igreja do Sagrado Coração de Jesus apazigua as tensões de uma comunidade que tem no seu labor o cultivo de algo tão delicado: as flores. Um paradoxo, em certo sentido. Visitando essa comunidade e registrando a tradição local, choca-nos ouvir ditos do passado, a exemplo de "comida de preto é couro”. Isso ratifica o que é comprovado na historiografia: a dificuldade da integração do negro em comunidades em que prevalece majoritariamente a raça branca, como é o caso de Vargem Alta.  

 

Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos

livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”

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Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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