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“Boa estrada!, tropa de burros, velhos tropeiros” - 30 de junho 2011
“Boa estrada!” Era assim que tropeiros e viajantes desejavam uns aos outros desde tempos imemoriais. Personagem de quatro séculos na história do Brasil, a vida do tropeiro aparece na literatura, nos versos de cordel, no folclore, na música e certamente na história, onde desempenharam um papel não só na economia como também na comunicação. O tropeiro, além de movimentar o comércio das vilas, era igualmente um portador de notícias. De Cantagalo partiam as tropas com o café, produzido na região, seguindo para diferentes portos. Eram quatro os portos por onde os fazendeiros de Cantagalo escoavam suas produções de café: Macaé, Porto das Caixas, São Fidélis e Magé, seguindo, consequentemente, por diferentes estradas. Era através da vila de Nova Friburgo, rumo a Porto das Caixas, que escoava a maior parte da produção de café de Cantagalo. Nova Friburgo necessitava economicamente do fluxo de tropeiros e se desenvolveu graças a esse trânsito de tropas por sua vila. Era a parada para o descanso dos animais, a procura de um bom pasto para aumentar-lhes as forças e, outrossim, para a aquisição de alimentos e algum material como fumo, aguardente, pólvora, ferramentas e outros utensílios antes de seguirem uma longa caminhada. Como o trânsito de tropas e de viandantes fomentava o comércio local das vilas, qualquer deslocamento das tropas, seguindo-se outro traçado, era o fim das vilas que viviam desse trânsito. Em 1833, quando a Câmara de Cantagalo projetou abrir uma estrada com direção a São José e “Sessenta e um”, saindo na Serra Nova, a Câmara de Nova Friburgo em ata consignou que “não só deserta [a vila de Nova Friburgo] como o seu comércio paralisado, visto que o que mais concorre para ela é a frequência de tropas, boiadas e viajantes que por aqui transitam...”. Era em Nova Friburgo que os tropeiros se proviam de mantas de toucinho, barriletes de açúcar grosso e sal, doces, aguardente, selas, arreios, redes, ponchos, mantas, velas, facões, armas e munição.
Pela manhã, nas fazendas, as bestas eram reunidas e os lombos dos burros eram carregados de café e cangalhas nas bruacas (sacos de couro). Como proteção contra a chuva e quedas no caminho, uma pesada coberta de couro cru era colocada por cima dos sacos de couro e amarrada com uma correia. Cavalos nunca eram usados nas tropas porque não aguentavam marchas forçadas de dez a doze léguas por dia, em maus caminhos, e não tinham equilíbrio nos atoleiros que se formavam nas estações chuvosas. Geralmente, cada lote de sete burros era dirigido por dois tropeiros, cada qual vestido com amplos chapéus de palha desabados sobre o rosto, calça de riscado e camisa de algodão grosso. Cobrindo-lhe o tronco espadaúdo, apenas um saco de aniagem, com um talho ao centro formando uma gola para passar a cabeça e a vestimenta caía-lhe sobre o dorso em forma de opa, deixando amplamente livre a ação dos braços. Ao entardecer, os tropeiros arranchavam nas praças das vilas, em sítios com ranchos, enfim, em qualquer lugar que lhes aprouvesse passar a noite. As “fazendas rancho” em Nova Friburgo disponibilizavam longas varandas cobertas com telheiros, onde os tropeiros tiravam os arreios dos animais, raspava-os com facão para tirar o pó e o suor, e descarregados de seus fardos, eram soltos nos pastos. A seguir, faziam fogueira e, num tripé à moda cigana, prepararam a refeição: feijão com carne-seca ou toucinho, angu de milho, quentão e, a partir de fins do século XVIII, café fumegante. A cachaça era usada em confraternizações ou como remédio. Entre os caboclos, peões, escravos, tocadores, arrieiros e camaradas, gemia a viola. Nos ranchos, quem chegasse primeiro deixava lugar para as mulas de outras tropas, e num gesto de solidariedade, ajudavam a descarregá-las quando necessário. As cargas eram arrumadas no rancho, com cuidado para não se misturarem. Há registro de que as casas dos colonos suíços depois de desocupadas serviram de pouso aos tropeiros. No entanto, na medida em que Nova Friburgo se desenvolvia e o seu comércio passou a depender menos desses tropeiros, foi proibida a passagem de tropas pela vila e “arranchadouros” nos logradouros públicos.
E os tropeiros seguiam viagem passando por veredas tortuosas, pirambeiras, passo tardo, gemendo as mulas ao peso das bruacas carregadas de café e mantimentos, formando extensas colunas divididas em lotes. Cada besta carregava oito arrobas (120 quilos), divididas em partes iguais pelas duas bruacas. À frente da tropa rompia a marcha a “madrinha”, besta ajaezada com largas correias, em cujo pescoço tinia um cincerro ou tilintavam pendurados enormes guizos e campainhas para facilitar a localização e condução do grupo. Pés enfiados em grossas alpercatas de couro cru, os tropeiros instigavam os muares com gritos guturais e assobios, descarregando de quando em quando com o seu bastão fortes pancadas sobre a cobertura da carga, feita de couro de boi. O naturalista alemão Hermann Burmeister, observando os tropeiros em Nova Friburgo em sua faina costumeira, ficou admirado da rapidez com que preparavam o acantonamento. Debaixo das barracas enfileiram as cangalhas uma enfiada na outra, ficando em outra fila as mercadorias, com bandeirinhas de cor azul, vermelho ou verde, que serviam para identificar os diferentes conjuntos. Sob três estacas deita fogo uma panela de comida, onde cozinham feijão e toucinho, alimento que comem duas vezes ao dia. Mesmo com o advento do trem o sistema de tropas permaneceu em Nova Friburgo para escoar os produtos de Sebastiana (estrada da Teresópolis) e Sumidouro. Os tropeiros, imortalizados por Chiquinha Gonzaga (1874-1935) em “A Partida do Tropeiro”, pelo compositor Elomar na composição o “Auto do Tropeiro Gonsalim” e igualmente “Tropeiros da Borborema” por Luiz Gonzaga, ainda são encontrados em algumas regiões do país, herdeiros de uma tradição e com muitas histórias ainda por contar. Dedico essa matéria ao ex-tropeiro Pedro Osmar, locutor da Rádio Friburgo AM.
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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