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A poya e o désalpes: uma tradição suíça
quarta-feira, 03 de setembro de 2014
Em visita que fiz ao Cantão de Fribourg, na Suíça, pude perceber como as montanhas estão no imaginário nacional. Dividida por quatro idiomas, além de inúmeros dialetos, me parece que o que dá unidade a esse país é o sentimento de pertencimento a uma região na qual as montanhas, os alpes são o seu referencial. Teria D. João VI resolvido instalar os colonos suíços na região serrana de Cantagalo, desmembrando-a, em razão de suas montanhas? Na Suíça, as montanhas estão presentes majoritariamente no artesanato local, no folclore, enfim, no inconsciente coletivo. O que mais me chamou a atenção foram os retábulos com a representação da poya. O recebimento de um presente de Robert e Christiane Schuwey de um quadro com a poya despertou ainda mais a minha curiosidade. Na representação pictórica, a poya (l’alpée) em franco provençal significa ascensão, "passar para pastagens de verão”. Representa a transumância das vacas leiteiras aos campos de pastagem floridos nos pré-alpes suíços. Ocorre notadamente em Gruyère, no Cantão de Fribourg. A subida às montanhas tem início na primavera e lá os pastores permanecem nessa estação e durante todo o verão nos chalets d’alpage. Os pastores, "les armaillis”, passam o verão nos seus campos férteis dos alpes, l’alpage, conduzindo suas vacas pelas montanhas. Em que proporção a transumância do gado leiteiro aos pré-alpes influencia na produção do queijo? Em muito, afirmam os suíços. Os queijos gruyère e vacherin produzidos nesse período têm um diferencial cujo sabor supera os que são produzidos fora dessa estação. O que dá melhor sabor aos queijos é o leite das vacas que consumiram uma pastagem especial, um tipo de grama florida que somente na primavera e no verão brotam nos alpes suíços. Certamente depois dessas estações esses queijos continuam sendo produzidos, mas o repasto das vacas já não é a grama fresca florida dos campos alpinos. Consequentemente, o gruyère e o vacherin não terão o mesmo sabor. Pode até parecer exagero e romantismo dos que desejam manter a tradição da poya afirmar que o queijo produzido nesse período é mais saboroso. No entanto, é deliciosa essa tradição da transumância das vacas leiteiras. O que torna o espetáculo mais grandioso é o ritual de descida das vacas entre 20 de setembro e 15 de outono. Já a descida chama-se de désalpe (rindyà ou almabtrieb em alemão). Descendo as montanhas, os pastores desfilam orgulhosamente com suas vacas decoradas para a ocasião. Missão cumprida! Os seus deliciosos queijos já foram produzidos nos chalets d’alpage, graças ao amanho da terra coberta de tenras gramíneas floridas. Já podem retornar aos seus domicílios. Quermesse, música folclórica, desfiles, leilões e até missa em dialeto local, o patois, fazem parte do evento cultural do désalpe.
Esse movimento sazonal de transumância, a ascendente ou transumância estival, e a descendente, ou transumância invernal, foi considerado patrimônio nacional pela Associação de Gruyère de tradições e costumes. Essa instituição preserva igualmente o l’armailli, o pastor alpino, figura emblemática da vida pastoral, enraizado na cultura nacional suíça. A música "vacas de Ranz” tornou-se um hino do Cantão de Fribourg e narra a epopeia desse personagem folclórico. Tanto na poya como no désalpe os pastores vestem o bredzon, uma roupa típica que consiste numa camisa azul clara social com estampa floral, um colete, a "loyi”, bolsa de couro adornada onde colocam sal e a "canne”, uma espécie de bengala, com versos e inscrições. Parte do rebanho porta os "sonnailles”, sinos presos ao pescoço das vacas com largas tiras de couro ricamente bordadas com as iniciais do proprietário. Tanto no désalpe como na poya, numa carroça, os pastores transportam o "train do chalet”, ou seja, utensílios e ferramentas utilizados na fabricação do queijo, como o grande balde de estanho, o balde de ordenha e o emblemático "Oji”, um tipo de tábua em madeira na qual transportam o queijo sobre os ombros. Guiando o rebanho, a vaca rainha lidera o cortejo e recebe maiores mimos e ricos adornos. Mas outras vacas igualmente recebem enfeites que consistem em ramos de pinheiro e flores do campo. Os sinos com suas baladas são um espetáculo à parte nesse acontecimento idílico. No século 18, havia aproximadamente uma centena de chalés de pastagens, os chalets d’alpages, nos cantões de Fribourg e de Vaud. Pastores desses cantões vieram para Nova Friburgo em 1819, sendo 605 de Fribourg e 80 de Vaud. Impossível imaginar no Brasil o estabelecimento dessa tradição por esses colonos, pois não temos o inverno rigoroso da Suíça e daí não há a necessidade da transumância. Imagino como esses pastores devem ter estranhado nossa região.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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