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A flanerie da preta Margarida
Graciliano Ramos escreveu no livro Alexandre e outros heróis que a alegria dos negros pelo fim da escravidão foi logo substituída por uma vaga inquietação. Ainda segundo ele, pelo menos enquanto escravos, tinham a certeza de que não lhes faltaria um pedaço de bacalhau, uma esteira na senzala e a roupa de baeta com que se vestiam. Já livres, necessitavam prover-se dessas coisas e não se achavam aptos para obtê-las. Recordemos, bacalhau no fim do século XIX, era alimento das classes populares. Em Friburgo, com o fim da escravidão, a Praça do Suspiro tornou-se Praça Treze de Maio, tecendo preito à lei de abolição do trabalho compulsório. Mas Friburgo, a exemplo de todo país, não cuidou da integração dos ex-escravos na vida social, marginalizando-os. Nos noticiários dos jornais da época, podiam-se ouvir as ‘vozes’ destes negros libertos pelas ruas de Friburgo, alcoolizados e senis. Costumava-se despachar os negros alcoólatras para o hospital de alienados, em Niterói, e os velhos indigentes para o asilo de mendicidade na capital federal. Apesar de muitos terem sido ‘despachados’, alguns resistiram e faziam parte do cotidiano da cidade.
Frequentemente, os negros eram objeto das brincadeiras e escárnio por parte da população. Havia em Friburgo o tenente maluco, que do meio-dia em diante ameaçava quebrar a cuia de quem passasse por ele. Já o negro Roão quando estava ‘na chuva’, ou seja, embriagado, despejava um turbilhão de palavrões. O articulista do jornal queixava-se: “ou ele ensaboe a língua ou raspe-se do lugar.” Já a preta Leopoldina, que atacava geralmente crianças na estrada, era a mais temida e levava bons sopapos e cachações do delegado quando detida. Uma outra mulher negra que dizia chamar-se Margarida e que o vulgo mudou-lhe o nome para Coruja, servia sempre de joguete da molecada. Por ela não concordar com a alcunha que lhe era atribuída, uma torrente de palavras, que segundo o jornal, a moral repugnava reproduzir, era proferida pela Coruja, aumentando ainda mais a gaiatice da rapaziada.
Mas a que melhor simboliza a marginalidade dos libertos é a preta Margarida ou Perua, nome dado pela molecada, sendo o tipo mais popular da cidade. Perua já não se irritava mais com a alcunha que lhe deram e passava requebrando o corpo, envolto em um xale e arrastando os chinelos. De luneta acavalada sobre o nariz adunco, lápis e papel nas mãos rascunhando caracteres ininteligíveis e bramindo alto, pintava a saracura, numa fúria de histeria inofensiva com terríveis predições apocalípticas. Na estação, na porta da igreja, a molecada gritava: “Perua! Perua!” Este era o grito constante, e por onde ela aparecesse formava-se logo uma roda. Havia os que a admiravam e ainda os que a provocavam para rir dos seus arremessos à garotada. Já os mais curiosos, paravam para ouvir suas previsões e imprecações de desgraças para o futuro. Perua era vista arrastando-se, beijando e chorando sobre lajedo dos adros da igreja Matriz. Neste momento, comovia os transeuntes mais piedosos, na sublime e dolorosa austeridade da sua religião de histérica. Após a penitência, Perua seguia sob um coro de gestos e apupos, já fazendo parte do cotidiano da cidade a flanerie, isto é, os passeios da jovem preta Margarida. No rosto, sempre a expressão alucinante ouvindo revelações da outra vida, tão inofensiva na sua demência, tão desgraçada na sua vesânia. Herança da escravidão em Friburgo! Fonte: Centro de Documentação Pró-Memória de N.F. Para conhecer a história de Friburgo, visite o site www.djoaovi.com.br.
Janaína Botelho é professora de História do Direito da Candido Mendes, pesquisadora e autora do livro O Cotidiano de Nova Friburgo no Final do Século XIX. mjbotelho@globo.com

Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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